terça-feira, 8 de maio de 2018

As etapas do medo


medo
ê/
substantivo masculino
  1. 1.
    psic estado afetivo suscitado pela consciência do perigo ou que, ao contrário, suscita essa consciência.
  2. 2.
    temor, ansiedade irracional ou fundamentada; receio.



Eu fui uma criança medrosa. Tinha sempre muito medo de dormir, minha imaginação corria solta ao cair da noite. Tudo o que via e ouvia, quando pequena, voltavam para mim em forma de monstros e perigos. Conforme fui crescendo, meus medos foram mudando. Na adolescência não tinha mais medo de monstros, mas de ficar e estar sozinha - principalmente para resolver os meus próprios problemas. Depois de adulta tinha sempre muito medo de perder o emprego e não ter como sustentar a mim e a minha filha. Depois que Tomás nasceu, ao vê-lo tão pequeno, frágil e dependente de mim, passei a ter um medo terrível de morrer e deixar o meu filho.

Mas, o medo não possui nenhuma substância e nem realidade existencial. São criações psicológicas de nossas mentes. Memórias de um passado de insegurança ou pensamentos sobre um futuro incerto que desencadeiam emoções que se refletem no nosso corpo e comportamento. O medo nada mais é que o excesso de imaginação.

Eu tinha um medo terrível e infundado de ter uma doença grave. Desde que fui mãe pela última vez, passei a vigiar e estar constantemente preocupada com a minha saúde. Quando ficava sabendo que alguém estava doente ou que tinha morrido de determinadas doenças eu ficava aflita. Já tinha um histórico de crises de ansiedade, que acabaram se intensificando. Há cerca de quatro anos finalmente procurei ajuda psicológica, porque sabia que uma mente sã é o princípio de um corpo são. De tanto sentir medo e criar tantas expectativas sobre minha saúde acabei atraindo aquilo que mais temia para mim.

E quando aquilo que você mais teme acontece, o medo deveria acabar, afinal já aconteceu e agora é preciso enfrentá-lo. Mas, a coisa não funciona bem assim. Um belo dia terminei minhas tarefas do dia e resolvi deitar ao lado do meu filhinho, que estava vendo um filme e ao abraçá-lo senti um peso no seio esquerdo.  Deitei direito na cama e resolvi fazer o autoexame ali mesmo. Então percebi uma massa mais espessa, fiz as contas e vi que não estava para menstruar (o que seria comum ter os tecidos mamários mais densos), examinei o outro seio, que estava normal. Voltei ao seio esquerdo e, analisando melhor, percebi um nódulo ovalado e do tamanho de uma uva. Imediatamente senti um frio na barriga que percorreu toda a minha espinha. Esse foi o primeiro medo que eu senti na noite de 16 de março de 2018. "Que caroço é esse agora?"

Com todas as informações que eu já tinha sobre o risco de câncer de mama, não foi difícil fazer as contas e ver que eu, que tinha acabado de fazer 46 anos, entrando na perimenopausa, fazia parte de um grupo de risco maior para o câncer. Assim que percebi aquele caroço no meu seio, corri para marcar uma consulta com um mastologista. Era noite de sexta e eu só consegui um horário para a segunda-feira à tarde. Quando Diego, meu marido, chegou eu estava pesquisando horários de consulta. Mostrei para ele o nódulo e marcamos a consulta. "Mas, e agora? O que eu faço até segunda?". Passei duas noites sem conseguir dormir. Naquela mesma noite comecei a pesquisar no google: "Qual a alimentação adequada para pacientes oncológicos?". Diego estranhou, disse que estava me precipitando. Talvez estivesse mesmo, mas eu só queria, caso meu medo se tornasse real, já estar fazendo alguma coisa para me ajudar. Já queria começar desde já trabalhar a meu favor.

Nessa madrugada insone, pesquisando sobre sintomas e soluções. Encontrei o blog da Patrícia Figueiredo, uma moça que venceu um câncer de mama à quatro anos e hoje incentiva mulheres a superar seus medos e dá dicas de como enfrentar essa situação tão complicada. Nesses dois dias eu vivi entre o medo e a razão. Analisava minhas mamografias anteriores, lembrei de cistos que tive antes e que sumiram e tentava me convencer que aquela pelota no meu seio não seria nada de mais grave. Resolvi contar para uma grande amiga - a Cris - o que estava acontecendo comigo. Há 2 anos ela havia sido diagnosticada erroneamente com um câncer e como fez muitos exames e biópsias, achei que ela teria informações para ajudar a me acalmar. Nesse dia descobri que a minha amiga, que sempre foi como uma irmã, era muito mais que isso. Ela simplesmente largou imediatamente tudo o que estava fazendo e veio em meu socorro. Me passou as informações que ela tinha e conseguiu me acalmar. 

No dia 19/03/18 passei na mastologista. Ela me examinou clinicamente, pediu exame de mamografia e ultrassom e me garantiu que aquele nódulo era benigno. Falou da experiência dela como mastologista, me explicou que o nódulo ovalado, liso, móvel, era um sinal claro de tumor benigno. Saí de lá um pouco mais confiante, mas o meu medo agora era de confiar cegamente nesse diagnóstico e depois sofrer muito caso recebesse um diagnóstico desfavorável, pois apesar da experiência dela, eu estava num grupo de risco muito alto para um tumor maligno. Eu sabia disso. Passei a semana - iria fazer os exames no sábado - entre medo e confiança.

No sábado, 24/03/18, fiz primeiro a mamografia e mesmo com um nódulo palpável do tamanho de uma uva, não apareceu absolutamente nada no exame. Isso me deixou bem intrigada e minha confiança - já que na mamografia anterior não havia nada - começou a vacilar. Sai da sala com um diagnóstico, igual ao do ano anterior, de Birads II - que significa: achados não malignos (por conta das calcificações esparsas no tecido mamário apenas) e  também escrito: não há evidência de nódulos

No mesmo dia fiz um ultrassom. Quando a médica posicionou o aparelho em cima do nódulo ele apareceu na tela, ovalado, medindo 2,1 x 1,3. Eu ouvia ela ditando para a auxiliar o tamanho, posição e quando ela disse: "nódulo vascularizado, parcialmente circunscrito". Eu comecei a chorar. Eu sabia o que aquilo significava: um nódulo vascularizado (presença de veias no seu interior) é uma das características de tumores malignos, pois é o sangue que faz as células se multiplicarem e o parcialmente circunscrito (parcialmente fechado, ou seja, o nódulo não estava encapsulado dentro de uma membrana o que impede as células saírem de dentro dele) outra característica de tumores malignos. Saí da sala com um laudo de Birads IV - que significa: achados com probabilidade de malignidade em 20% e a recomendação da médica: "vai no agendamento, pede para adiantar a sua consulta com a mastologista e pede para ela te dar um pedido de biópsia guiada por ultrassom". Pela segunda vez senti aquele frio na barriga e quando encontrei o Diego e o Tomás na sala de espera, caí no choro. Olhei pro meu filho e senti um medo terrível de deixá-lo. Acho que esse foi o pior momento, foi o meu medo tendo pela primeira vez um fundamento.

Adiantei a consulta para a segunda-feira 26/03/18. Uma vez mais a médica olhou os laudos e me afirmou: "Adriana eu tenho mais de 90% de certeza de que o seu tumor é benigno. Vamos fazer a biópsia e você vai poder ficar tranquila". Por mais que eu quisesse acreditar naquelas palavras, eu simplesmente não conseguia. A minha intuição e aqueles frios na espinha falavam mais alto. Consegui marcar a biópsia para dali três dias. Mais três dias sem conseguir dormir direito, mais  três dias entre confiança e medo. Analisando tudo o que eu tinha feito até então que pudesse me aliviar ou me apavorar. Decidi contar para algumas pessoas. Parecia que quanto mais eu falasse sobre o nódulo o meu medo iria desaparecer, mas não desaparecia. E mais uma vez quem mais esteve do meu lado foi a minha amiga Cris, que pensava racionalmente comigo e o Diego que tentava, em vão, me tirar daquele estado de alerta e ansiedade.

No dia 29/03/18 fui para a clínica fazer a biópsia. Enquanto esperava a minha vez ouvi uma senhora ao telefone falando com alguém: "você não imagina o alívio que estou sentindo, meu tumor não é maligno". Pouco depois saiu uma jovem chorando muito, rodeada por várias pessoas - que imaginei serem seus familiares - e um deles lhe disse: "tenha calma agora, você vai tratar e vai se curar!".  Quando a enfermeira chamou o meu nome, pela primeira vez nessa situação eu não tive medo. Sabia que iria ser furada com uma agulha grossa, que iria perfurar o meu seio e ir até o nódulo e retirar pedaços dele, mas naquele momento o maior medo que eu estava sentindo era do resultado desse exame. Quando terminou de colher o material a médica me disse: "deu tudo certo Adriana, nós conseguimos colher um bom material e quero te dizer que você é 'das corajosas', a calma que você manteve ajudou muito no exame, que costuma sangrar muito, mas no seu caso quase não sangrou." Ela me desejou boa sorte e eu fui para casa amargar oito dias de espera pelo resultado.

Foram mais oito dias de ansiedade, solidão, fé, esperança, confiança ou medo. Tentei me distrair organizando a festinha de aniversário de 5 anos do Tomás. Com muita coisa para organizar da festinha, com visitas em casa e toda a minha rotina, consegui esquecer por alguns momentos que estava esperando o resultado de uma biópsia que iria me dizer se eu estava ou não com câncer de mama. No dia da festa, no sábado 07/04/18, Diego já sabia do resultado, mas não contou. Disse que quando chegou em casa e me viu feliz, conversando com meus sogros e as crianças, não teve coragem de me contar. Eu, com medo de ler o resultado sozinha em casa, dei o protocolo para ele, que levou para o trabalho e de lá acessou o resultado no site. Não sei como ele conseguiu guardar segredo por três dias, mas eu percebi que ele estava meio triste.

Na segunda-feira 09/04/18 finalmente peguei o diagnóstico na clínica. Diego estava comigo. Eu tinha consulta marcada com a mastologista logo em seguida e o Diego se adiantou, pegou o exame e não queria que eu abrisse antes, queria que entregasse para a médica. Foi quando eu disse a ele que preferia abrir logo, que ele abrisse, que preferia ouvir dele do que da médica. Entramos no táxi, ele abriu o laudo e me disse: "É um carcinoma amor!". Naquele exato instante eu me senti extremamente aliviada, calma, sem ação. Exatamente como me senti ao receber a notícia que o meu avô - uma das pessoas que mais amava nessa vida - havia morrido. Em seguida cai no choro. Dizia pra mim mesma em voz alta: "você vai sair dessa!". Diego me abraçou e disse que estaria ao meu lado, que tudo iria passar e que vou me curar.

A médica me encaminhou para o SUS, pois a partir dali eu não teria mais como bancar o tratamento, caríssimo, que precisarei fazer. Imediatamente comecei a correr atrás da minha cura. Sai da clínica e fui direto na UBS, onde me consulto, e marquei para o dia seguinte uma consulta com o meu ginecologista. A minha amiga Cris -  mais uma vez -  largou tudo que estava fazendo e veio me abraçar, enxugar as minhas lágrimas e me dar um pouco de conforto. Ficou comigo até tarde naquela noite e na manhã seguinte foi comigo ao médico. Os amigos que fiz na UBS, vieram todos prestativos para me ajudar. Dr. Cheng, meu ginecologista, me deu umas dicas do que eu já poderia fazer. E pediu urgência no meu agendamento. A Susana, moça que busca vagas, disse que estaria o tempo todo monitorando uma vaga para mim. O prazo do SUS é de 20 dias, ela me disse que conseguiria em 10 dias, mas 5 dias depois ela me ligou. Quando peguei a guia, vi que ela tinha recebido a informação às 12:11 e ela me ligou às 12:15. Então eu comecei a perceber que todas as pessoas que um dia eu conheci, pessoas que gostam de mim, começaram a correr ao meu lado. Quando decidi postar no meu facebook sobre o meu diagnóstico, recebi quase trezentas mensagens, e eu tinha quinhentos amigos até então no perfil. As mensagens, os telefonemas da minha prima Thaís e todas as pessoas que vieram até a mim - de alguma forma -  me deu uma coragem e forças que até então eu desconhecia. A cada dia passei a estar mais forte e confiante, mas o medo ainda existe.

No dia 03/05/18, passei na primeira consulta do IBCC - Instituto Brasileiro de Combate ao Câncer. Saí de lá com uma papelada imensa de guias de exames e o medo voltou a me rondar. Estou refazendo todos os exames, em aparelhos mais sofisticados. O Resultado do ultrassom do IBCC já trouxe algumas diferenças do exame anterior: na verdade eu tenho 2 nódulos e não 1. Um deles, que está com 2,6 cm, é o tumor (que agora é chamado de suspeito de carcinoma) foi também relacionado como circunscrito (fechado) e não parcialmente circunscrito (parcialmente fechado) como no ultrassom anterior. E nesse exame aparece também um outro nódulo de 1,5 cm (comprovadamente benigno - um lipoma). Nesse exame também deu para ver os linfonodos axilares presentes e que eles estão normais. Isso significa que possivelmente não há metástase desse tumor. O medo agora é do resultado dos outros exames. Dia 11 levo as lâminas da minha biópsia para fazer uma contra prova - que vai dizer se o meu tumor é mesmo um carcinoma, as chances de que não seja são mínimas, mas ela existe. Dia 11 sai também o resultado da tomografia que fiz - do pescoço até a pelve - e que irá me dizer se há ou não outros tumores nos meus órgãos. E dia 15 faço a cintilografia óssea, que vai me dizer se há ou não células cancerígenas ou tumores nos meus ossos. E esse medo que anda me assombrando agora só vai passar depois que souber essas respostas.

Por mais que esteja sentindo tanto medo, também nunca me senti tão corajosa e determinada - para enfrentar essa doença. Todos os dias eu acordo pronta para enfrentá-la, fazendo tudo o que posso para ajudar na minha cura: alimentação, exercícios físicos, meditação, orações, pensamentos positivos, leituras sobre como minimizar os efeitos do tratamento e depoimentos de pessoas que enfrentaram a doença e saíram vitoriosas. Mas, todos os dias eu também sinto muito medo. Medo daquela dorzinha insistente no meu quadril desde que corri 4 km e caminhei 6 km no final de semana. Medo daquela dorzinha no pescoço - provavelmente por ter dormido de mal jeito. Medo da minha visão que anda meio fraca, medo da dor no ovário - provavelmente meu endometrioma, já diagnosticado. Medo do resfriado que o meu filho pegou na escolinha e passou pra mim. 

Eu sei que os meus medos estão longe de terminar. Depois que souber o resultado dos exames, outros medos virão. Mas, agora é diferente. Junto deles eu tenho desenvolvido também uma força, coragem e determinação para vencê-los todos. Eu ainda choro no banho, quando me lavo e sei que em breve não poderei mais lavar o meu seio esquerdo inteiro como agora. Choro de medo de morrer cedo e deixar o meu filhinho ainda pequeno por criar e a minha filha mais velha sem o meu amparo. Medo de partir logo e deixar meu marido sozinho para criar o nosso filho e sem realizarmos todas as coisas lindas que sonhamos juntos. Mas, é também esse medo terrível que me impulsiona. Que me faz ter uma força inimaginável antes para enfrentar o que tiver de enfrentar.

Eu não sei o que me espera no futuro, mas sei que vou enfrentar o que vier. Que vou fazer tudo o que for preciso para reverter a minha situação.  Eu tenho medo, mas também sei que terei toda coragem desse mundo para fazer todos os exames, por mais complicados que eles sejam. Serei a pessoa mais corajosa desse mundo para encarar a minha cirurgia e farei corajosamente todas as sessões de quimio, rádio e hormônio terapias. É engraçado como sentimentos tão contraditórios passam a caminhar juntos. Mas é exatamente assim que me sinto: Tomada pelo medo e pela coragem ao mesmo tempo.

Orem por mim,
Torçam por mim!

Um beijo à todos.




fotos: site vida / divulgação icespsp/ instagram / adriana mani





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