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domingo, 22 de janeiro de 2023

Coitadinha da Neném!

Eu tinha 2 anos e ela 10 meses quando fomos brutalmente separadas. Havia passado 9 meses ouvindo que teria um irmão ou irmãzinha para cuidar e mais dez meses cuidando, como podia, dessa irmã.

Nossos pais se separaram. Eu não tinha a menor condição, na época, de compreender os motivos e, apesar de ter apenas 2 anos e 10 meses quando isso aconteceu, me lembro perfeitamente das brigas, das palavras que eram ditas e exatamente do dia em que chegamos à casa do meu avô materno sem a minha irmãzinha, que havia ficado com o meu avô paterno.

Durante muito tempo - muito mesmo - esperei que ela voltasse. Chorei no colo da minha avó querendo minha irmãzinha de volta. Não conseguia dormir e não podia compreender porque a haviam tirado de mim. Cresci esperando o abençoado dia que iam me devolvê-la. Fiquei adolescente e virei uma mulher esperando o dia em que pudéssemos - agora livres - escolher viver toda a vida que nos foi negada. Que pudéssemos ser as irmãs que não nos foi permitido ser.

Enquanto crescia a frase: "Coitadinha da neném!", apesar de incompreensível, fazia todo sentido do mundo para mim. Eu me lembrava, mas não sabia porque repetia essa frase sempre que o nome da minha irmã era mencionado. Coitadinha dela! Coitadinha de mim!

Por mais que todo o tempo em que estivemos juntas na vida tenham sido de 10 meses, depois disso apenas em 1 final de semana e 1 viagem depois disso -  um tempo curtíssimo. Eu não compreendia a razão pela qual, desde os meus 2 anos de idade, me sentia tão responsável por aquele bebê que fora arrancado de mim, havia tantos anos. Como se a culpa fosse minha, como se eu tivesse feito algo errado, ou como se eu não tivesse tomado conta dela direito.

Passei toda infância sonhando com o dia em que brincaria de casinha com a minha irmãzinha. Reprimindo em mim aquele desejo absurdo de cuidar dela a cada vez que a via, nas rara e curtas visitas em que estive com ela. Nas visitas, rápidas, em que minha tia cochichava ao meu ouvido que eu não podia contar à ela que nós duas éramos irmãs. Apesar do absurdo daquela situação, eu obedecia sem protestar. Eu tinha apenas seis, sete, oito e nove anos, mas já sabia que iria precisar esperar pelo momento certo, que precisaria crescer e esperar que ela crescesse, para mudarmos aquela realidade que me causava tanto incômodo e dor.

Passei toda adolescência esperando pacientemente pelo dia em que ela tivesse a vida dela e que pudéssemos, como nos filmes, viver livremente toda aquela cumplicidade e amizade que havia nascido, há tanto tempo, naquele pequeno berço de madeira. Eu me lembro daquele berço com todos os seus detalhes. E me lembro das tardes - que pareciam eternas - em que passei deitada ao lado dela esperando que alguém chegasse para cuidar de nós. Eu não poderia trocar suas fraldas e nem fazer a sua mamadeira, mas me deitava ao seu lado e ficava passando a mão no seu rosto até ela dormir. Isso não foi ninguém que me contou, são coisas das quais me recordo como se tivessem acontecido agora mesmo. Estar em casa sozinha, deitada no berço ao lado da minha irmãzinha, que só tinha alguns meses, naquela casa de madeira sem pintura, é algo ainda hoje muito nítido nas minhas lembranças. Eu me sentia totalmente responsável por aquele bebê, sozinha com ela na casa. Coitadinha da neném! Eu repetia para as pessoas, mas ninguém de fato entendeu que eu sabia exatamente o que estava acontecendo. Eu mesma precisei de 47 anos para entender,  de verdade, o que aquilo tudo significava e ligar os fatos às minhas antigas memórias.

Eu cresci, ela cresceu. Me tornei boa mãe. Aquele instinto maternal - desperto em mim quando tinha apenas dois anos de idade - me fez boa mãe, ainda que eu só tivesse 20 anos quando minha filha nasceu. Ainda que tivesse 16 ou 19 eu jamais teria ido embora ou deixado um bebê de 10 meses sozinho com uma irmã de apenas 2 anos e 10 meses. Ainda que eu tivesse esses mesmos 2 anos e 10 meses e soubesse cuidar desse bebê, eu teria cuidado. Teria alimentado e aconchegado em meu colo, mas tudo o que eu podia fazer, aos 2 anos, era me deitar ao lado dela. 

O fato é que crescemos, nos tornamos adultas e, durante esses quase 48 anos, tudo que tivemos foi um único final de semana em que eu pude, finalmente, ser a irmã dela. Um único final de semana, que achei que seria apenas o primeiro - quando fui morar na mesma cidade que ela para fazer faculdade. Não foi! Aquele dia nunca mais se repetiu, nem mesmo quando viajamos juntas - anos depois - quando percebi que éramos duas perfeitas desconhecidas. Aquele final de semana nunca mais vai se repetir, porque a distância nos tornou pessoas completamente diferentes uma da outra.

Durante muito tempo eu tentei, de todas as formas, me aproximar e tomar de volta o meu lugar, mas todas as tentativas foram frustradas. Aos 15 anos me meti num ônibus, sozinha, por 650 km, sem nunca ter feito isso antes, e fui até ela. Mas, ela ainda só tinha treze anos e eu não poderia tomá-la de volta e fazer dela uma irmã. Ela já conhecia uma história completamente diferente da que eu conhecia. Já sabia, por exemplo, que tinha sido dada em adoção e que estava sendo criada como filha pelos meus avós, mas não sabia absolutamente nada a meu respeito. No quanto a vida já era difícil para mim, de quantos sofrimentos eu já tinha passado, mesmo tendo apenas 15 anos. 

Ela cresceu achando que eu tinha sido escolhida para ir e ela para ficar. Quando na verdade eu também tinha sido deixada no lar dos meus avós. Eu não havia sido escolhida para ser amada, fui apenas um cabo de guerra de uma briga estúpida entre nossos pais. Ele não ficou por minha causa, tampouco me levou com ele, mas ela também não ficou comigo!

Há quatro anos, finalmente ouvi, do meu corajoso terapeuta, que eu nunca recebi amor pois não tinha cumprido a função para qual havia sido feita: a de segurar o homem amado ao fracassado casamento. Eu não cumpri minha função e a minha irmãzinha, de apenas dez meses, tinha piorado a situação. O nascimento da minha irmã o fez fugir - ainda mais rápido - com a outra. Nós três ficamos sozinhas. Nós duas ficamos sozinhas, em seguida. Eu fui disputada apenas porque a outra - a amante - me queria - e esse gosto ela jamais iria ter. Eu fui disputada, mas o vencedor nunca me amou. Minha irmã nunca conheceu esse lado da história, cresceu nutrindo por mim uma desconfiança e, talvez, algum rancor daquela que havia sido a escolhida.

O fato é que a irmã - nas palavras dela mesmo - teve seis irmãs, um pai e uma mãe. Nunca se sentiu abandonada, apesar de ter sido. E que essa dor - da ausência - era uma dor só minha. O que ela nunca soube é que eu também fui abandonada. Que eu também tive apenas o amor dos meus avós. Que fui uma criança amada, mas eu tive apenas avós. Jamais tive pais e nunca tive uma irmã presente. Também nunca tive nenhum rancor, eu apenas esperei, pacientemente, durante quase uma vida, pelo momento em que poderia reverter isso.

Precisei viajar 1700 km - depois de tanto tempo. Reencontrar o meu avô, idoso mas completamente lúcido, e em meio a conversas, tão despretensiosas, refazer aquele trajeto de quase 48 anos antes, para finalmente entender tantas memórias antigas, avulsas, que atormentavam minha imaginação. Pude enfim corroborar cada uma daquelas minhas lembranças frágeis da infância com histórias reais de quem também esteve lá naquele dia. Eu tinha apenas dois anos e dez meses, mas minhas lembranças eram reais. 

Hoje li mais uma vez, a penúltima conversa com ela, há 2 anos. Eu acabara de assistir a um filme chamado "Minha Irmã de Paris", em português. O filme contava a história de duas irmãs (gêmeas) que foram separadas aos 2 anos de idade. Uma ficou com a família paterna  e a outra com a família materna, quando os pais faleceram. Uma delas sempre soube a verdadeira história, já a outra - assim como nós - não sabia que era adotada. Foi um mero acaso ter assistido a esse filme e fiquei impressionada com as semelhanças com a nossa história. Nem sei porque escrevi à ela. Talvez para lhe contar isso, porque não tinha outra pessoa para falar, alguém que pudesse entender, caso também tivesse visto o filme. Ela não queria falar sobre o filme. Afinal ela tinha uma família e aquilo não fazia o menor sentido para ela. Desconversou. Como desconversava sempre que eu tentava uma aproximação. Mesmo depois de nós duas termos nos tornado mulheres maduras, desconversava. Eu ainda sentia muita falta de falar com ela, como fizemos naquele único final de semana em 1999.

Minhas sobrinhas nasceram e cresceram sem que eu pudesse ter trocado uma única fralda que fosse delas. Minha filha nasceu e cresceu sem que a tia nunca a tivesse segurado nos braços. Meu filho cresce sem seu colo também. Aquele dezembro de 1974 foi definitivo no nosso destino. Para mim o pouquíssimo tempo  em que estivemos juntas nunca foi o suficiente. Mesmo aquele final de semana falando sobre filmes e arte em 1999 ou aquela semana, em 2017, em que viajamos juntas e pude entender, pela primeira vez, que eu a havia perdido para todo sempre. Nós não nos conhecemos e, diferente dos filmes - onde não importa quanto tempo se passe - quando as irmãs finalmente se encontram acabam se tornando próximas. Nós nunca seremos ao menos amigas. Eu já não espero mais por essa redenção e nem que um dia teremos a cumplicidade e a amizade de verdadeiras irmãs. Lamento muito não ter podido viver essa relação. Mas, entendi que esse vazio nunca poderia ser preenchido. Passei muito tempo procurando, nas amigas, a irmã que havia sido roubada de mim, mas essas coisas não podem ser substituídas. 

Cresci achando que quando fôssemos adultas poderíamos mudar o mundo juntas e romper todas as barreiras, mas algumas barreiras são intransponíveis. O filme me fez pensar em tantas coisas. Nós duas já tivemos, pelo menos, uns 25 anos para fazermos isso - transpor essas barreiras - e nos conhecermos. Agora isso dependeria apenas da nossa própria vontade. As barreiras hoje são colocadas por nós mesmas, por uma de nós ao menos. 

Hoje estou conformada e bem resolvida sobre isso, mas me entristece saber que poderíamos ter reconstruído, do zero, a nossa história, se quiséssemos. O maior exemplo disso é a amizade e a cumplicidade que tenho hoje com a minha sobrinha, filha da minha irmã. Uma amizade que foi construída por nossa própria vontade. Um vínculo que decidimos ter e o construímos a partir do nosso único desejo. Sem memórias ou vivências anteriores. Essa talvez tenha sido a forma que a vida encontrou de me devolver algo que havia perdido há tanto tempo. Minha sobrinha me procurou quando mocinha, nos aproximamos, nos acolhemos, aprendemos nos amar incondicionalmente e desde então ela é a pessoa mais próxima que tenho na família de onde vim. Nós duas éramos duas completas desconhecidas - padecendo de uma falta parecida - e simplesmente decidimos nos tornar cúmplices, confidentes, amigas e quase irmãs. Ela me deixou ser sua tia. Me permitiu entrar na sua vida e ocupar o meu lugar nela. Me dá uma alegria imensa poder dizer: minha sobrinha se parece tanto comigo. Ou, simplesmente, olhar nossa foto juntas e identificar tantos traços em comuns. Saber que nosso DNA é algo tão incrível e forte que atravessou uma geração.


Foto: Divulgação Pagu Filmes e Incognita


segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Reconstrução - Parte II - No meio do caminho havia um útero.

 

Em junho de 2021, quando iniciei o processo de reconstrução mamária, prometi voltar aqui para contar como anda esse processo. A primeira etapa foi um sucesso. Foi feito uma abdominoplastia e, como já havia contado antes aqui, o material foi usado para reconstruir a minha mama esquerda. A cirurgia durou cerca de oito horas e o trabalho da equipe foi incrível. Tive uma ótima recuperação, levando-se em conta que se tratou de uma cirurgia de grande porte, em poucos dias estava super bem. Não senti dores, e a recuperação foi bem menos chata do que imaginei que seria. Três meses depois a mama reconstruída estava com ótimo aspecto e caimento. Antes dos ajustes eu já estava feliz com o resultado, mesmo sem o mamilo esquerdo. No geral posso dizer que foi uma experiência muito gratificante, que me devolveu a sensação de estar inteira outra vez.

Há dois dias fiz a segunda etapa da reconstrução. Ainda estou aqui me recuperando. No meio do caminho, no acompanhamento com a minha ginecologista, descobri que o meu endométrio estava um pouco espesso. Então decidimos tirar também o útero preventivamente. Não foi uma escolha difícil, depois de ter tido sucesso na ooforectomia preventiva em 2019. Dessa forma poderei encarar os anos que faltam, do tratamento hormonal, mais tranquila, sem o medo constante de que um endométrio espesso, por conta do uso do Tamoxifeno, possa aumentar o risco de um câncer de útero. Uma coisa menos para me preocupar. Como a cirurgia plástica da mama já estava marcada conseguimos conciliar as duas e meus médicos, maravilhosos, fizeram as duas no mesmo dia.

Dizendo dessa forma, parece fácil, mas reconstruir sua vida pós câncer de mama não é uma tarefa simples. É necessário passar por muitos desafios e etapas que eu jamais teria escolhido passar, mas que durante toda essa jornada estão me tornando uma pessoa de quem eu gosto mais. Até agora, desde que descobri o câncer, em março de 2018, aconteceram tantas coisas que olhando em retrospecto nem sei como consegui vencer cada uma delas: começou com uma mastectomia radical da mama esquerda, dois meses de quimioterapia que me deixou sem os cabelos e por dias bem debilitada. Em 2019 tive episódios de depressão que me nocautearam, talvez mais que a químio. Ainda em 2019 desenvolvi um cisto imenso no ovário, causado pelo uso da medicação, e decidimos retirar os ovários para aliviar as dores e também como forma de prevenção já que o tratamento do câncer de mama aumenta um pouco o risco de desenvolver câncer de ovários. Nessa época morei por alguns meses em outra cidade e precisava vir todos os meses até São Paulo, para continuar o tratamento. No início de 2020 voltei à São Paulo e as coisas ficaram mais fáceis.

No final de 2020 meu mastologista, pela décima vez, quis me encaminhar para a cirurgia plástica para reconstruir a mama, mas eu só aceitei falar com o cirurgião quando a minha oncologista me declarou em remissão completa da doença em três anos. Isso significa que em três anos a doença não voltou e não houve nenhuma intercorrência que indicasse a possibilidade disso acontecer. Isso quer dizer que nesse momento estou curada, mas que o tratamento e o acompanhamento, que à princípio seriam de cinco anos, ainda não acabou. Mas, não deixou de ser um marco, um motivo de grande comemoração e só então decidi fazer a reconstrução. Depois de retirar o útero a minha onco resolveu estender o tratamento com o hormônio por dez anos, já que estudos novos sugerem maior segurança para a paciente se usado a medicação por mais tempo.

Depois do trabalho mais pesado finalmente eu comecei a me empolgar com a possibilidade de me refazer. Eu já estava completamente desencanada. Pensava, inclusive, em nem fazer a reconstrução, mas quando falei com o Dr. Washington, ele conseguiu me convencer de que eu merecia ter de volta esse pedaço da minha vida e do meu corpo. Ele estava certíssimo! Já na primeira etapa eu percebi que aquela Adriana, de antes do câncer, finalmente estava de volta. E não tenho nem palavras para agradecer o carinho e o cuidado dele, e de toda sua equipe, comigo. Tem sido uma experiência realmente boa depois de tantos percalços.

Eu sempre digo isso e preciso reafirmar que sou uma pessoa de muita sorte, por ter desde o início dessa saga encontrado os melhores médicos e pessoas que eu poderia ter encontrado. Dr. Andrade, meu mastologista, foi muito acertivo em todos os conselhos e recomendações que me deu. Fizemos a melhor escolha ao focar em uma coisa de cada vez. Não quis fazer a reconstrução imediata, preferi tratar a doença primeiro e ter certeza de que ela provavelmente não retornaria. Foi uma escolha muito feliz. Fazer a reconstrução tardia me deu a tranquilidade de concentrar toda minha energia na cura da doença e a possibilidade de encontrar, três anos depois, o Dr. Washington que me apresentou exatamente o tipo de reconstrução que eu queria fazer.

Também conto, nesse tempo todo, com a parceria da Dra. Kelly, minha oncologista, que tem sido um verdadeiro anjo na minha vida. Sempre muito realista comigo, me colocando de frente com as melhores soluções, como ter tirado os ovários, para poder parar de produzir hormônios e entrar logo na menopausa, por exemplo. Esses cuidados todos tem feito toda diferença no meu tratamento. Há um ano conto também com o apoio da Dra. Maria Augusta, que é uma pessoa incrível. Alguém que eu quero como amiga pelo resto dos meus dias. Ela tem sido muito mais que uma médica e terapeuta - porque ela acaba sendo um pouco minha terapeuta também. É alguém que já posso chamar de amiga. Eu tenho muita sorte! Muita! Estou cercada de pessoas que fazem as coisas serem muito mais fáceis para mim. Esse post é também a expressão de toda minha gratidão à eles. Obrigada! De todo meu coração.

Eu costumo dizer que não têm como passar por um tratamento de câncer sem algumas lágrimas, houveram muitas, e sem alguma dor. Também tive muitos dias dolorosos, de muito sofrimento, dúvidas e muito medo. Mas estou aqui para lhes dizer que é possível passar por tudo isso com o menor estrago. Acho que a parte mais importante disso tudo foi eu ter aprendido que algumas coisas eu precisaria passar sozinha, que era preciso abandonar algumas crenças, me desprender de toda e qualquer vaidade e não sofrer lutos desnecessários. Eu quero VIVER! E viver acabou sendo mais importante do que ter seios e cabelos ou não ter olheiras e algumas cicatrizes. É preciso em algum momento decidir e apenas IR!

Essas marcas no meu corpo hoje têm esse significado: EU ESTOU VIVA! Eu estou sobrevivendo há três anos apesar de todo medo e angústias durante o percurso. O que começou de forma tão dolorosa e num abismo de insegurança tem me tornado uma pessoa mais forte. Eu já era muito forte, mas antes eu não sabia disso. Tem me tornado uma pessoa que eu sei quem é e do que é capaz de suportar. Alguém que eu admiro e hoje posso dizer isso sem parecer arrogante. Eu sou uma pessoa incrível, por ter sido corajosa o suficiente de ir, mesmo com medo, mesmo com dor. Essas marcas hoje não doem, juro, não doem nadinha. Talvez, por eu ter me acostumado que para se estar vivo é preciso aprender a conviver com a dor e o medo.

Além de tirar o útero, dessa vez ajustamos a simetria das mamas e reconstrução do mamilo (foi feito um transplante do mamilo da outra mama), que eu ainda não vi, mas tenho certeza de que ficou ótimo. A ultima etapa dessa via crucis agora será a tatuagem da aréola. E ai acabou!

Por mais louco que isso seja, apesar desses hematomas, da lipoaspiração para enxertia na mama, essa pessoa que lhes escreve aqui é uma das pessoas mais felizes desse mundo hoje. Eu estou aqui! Por mim, pelos meus filhos, pelo meu amor, pelos amigos e minha família. E cada dia tenho mais certeza de que ainda vou ficar aqui por um bom tempo.

Que assim seja!

Esse texto foi escrito ao som de "another love" do Tom Odell.

Fotos: acervo pessoal





segunda-feira, 8 de março de 2021

Dia da mulher? Não, obrigada! Eu quero respeito o tempo todo.

Hoje é aquele dia em que a Internet descobriu que a mulher existe. O dia em que o comércio distribui rosas vermelhas para todas as mulheres que passarem em seus estabelecimentos. E já que todo mundo está prestando atenção na gente hoje seria bom aproveitar para dizer que rosas vermelhas não igualam salários.

Também podemos aproveitar esse instante, de fama, para dizer que NÃO, não somos "guerreiras", na verdade odiamos guerras! Também não somos essa "mulher forte"e muito menos queríamos estar vencendo "batalhas".

Honestamente, nós até que precisamos muito de ajuda e temos um bocado de medos e só queríamos ser valorizadas de verdade. Não apenas por homens, mas pelas outras mulheres. Principalmente por elas!

Gostaríamos que empatia fosse algo genuíno, que já nascesse implícito nas pessoas e que antes de julgar uma mulher, seja pelo que for, que ao menos tentassem entender o que acontece com ela. Uma mulher não precisa de rosas vermelhas, num dia qualquer, só porque querem vender algo para ela. Na verdade o que as mulheres querem é não ser importunadas nas ruas, em suas casas, ter que brigar por seus direitos fundamentais e nem ser comparadas o tempo todo.

Tudo que uma mulher quer é não ser mais um número nas estatísticas de feminicídio. Aliás, feminicídio não acontece apenas quando um homem descarrega uma arma numa mulher ou a atire do décimo andar. Acontece também quando uma mulher é obrigada trabalhar à exaustão sem ter tempo, ou dinheiro, de cuidar da sua saúde. Quando lhe é negado o direito de cuidar adequadamente da sua saúde e ela morre por causa disso. Acontece quando uma mulher é negligenciada e quando ela precisa carregar o mundo nas costas sozinha até sucumbir.

O que uma mulher realmente quer, não apenas no dia de hoje, é ter um tratamento justo, honesto. Não ser um objeto de consumo e não ser obrigada a ser perfeita o tempo todo. Ela quer ter o direito de não seguir padrões de belezas absurdas ou sofrer julgamentos ferozes. Ninguém, além dela própria, saberá jamais o que é estar na sua pele, enfrentando seus medos, suas fraquezas e dificuldades, então ninguém está apto a julgá-la.

Ela quer ter a liberdade de ser quem é, sem tantas cobranças, sem que o mundo siga achando que ela é uma "mulher guerreira e forte e dá conta de tudo". Porque não somos! Nós somos iguais a todo mundo: temos limites, nos cansamos, não damos conta, fracassamos e nos esgotamos, mas somos OBRIGADAS a ir além de nossos limites. Somos obrigadas a respirar fundo e levantar nosso corpo cansado e ir à luta. Uma luta que jamais queríamos travar, com nada e nem ninguém.

Ela só quer ser acolhida por outras mulheres quando precisar de apoio. Não ser agredida justamente por quem mais deveria entendê-la. Não ter a sua imagem atrelada à sexualidade, à uma perfeição que a agride tanto. Não ter as suas decisões mais íntimas à cargo de quem não conhece suas dores. Não ter o seu corpo e destino nas mãos de homens inescrupulosos e falsos moralistas. Ela quer exercer o seu direito sobre si mesma.

Seria tão simples! Com apenas um pouco mais de empatia e respeito nós não precisaríamos de "dia" nenhum para dizer essas coisas todas. Se tivéssemos um pouco mais de justiça e voz, nós não precisaríamos de nos impor, buscar migalhas de empoderamento ou gritar nas ruas que estamos cansadas.

Quanto mais "super', "batalhadora", "fodona', e o escambáu a gente se declarar, num dia como hoje, mais o mundo seguirá achando que aguentamos tudo, que suportamos tudo e que damos conta de tudo. Nós não damos conta de tudo! Precisamos compartilhar a carga, precisamos de ajuda, de abraços sinceros, de justiças e de compreensão.

Se você não vai caminhar ao lado dessas mulheres e ajudá-las a carregar suas cargas, se não nos entende, se nos julga e nos compara. Por favor, não nos deseje um "feliz dia da mulher".

Adriana Mani - lavienrosedadri.blogspot.com

arte: A.J. Cass - disponível na internet.