Nossos pais se separaram. Eu não tinha a menor condição, na época, de compreender os motivos e, apesar de ter apenas 2 anos e 10 meses quando isso aconteceu, me lembro perfeitamente das brigas, das palavras que eram ditas e exatamente do dia em que chegamos à casa do meu avô materno sem a minha irmãzinha, que havia ficado com o meu avô paterno.
Durante muito tempo - muito mesmo - esperei que ela voltasse. Chorei no colo da minha avó querendo minha irmãzinha de volta. Não conseguia dormir e não podia compreender porque a haviam tirado de mim. Cresci esperando o abençoado dia que iam me devolvê-la. Fiquei adolescente e virei uma mulher esperando o dia em que pudéssemos - agora livres - escolher viver toda a vida que nos foi negada. Que pudéssemos ser as irmãs que não nos foi permitido ser.
Enquanto crescia a frase: "Coitadinha da neném!", apesar de incompreensível, fazia todo sentido do mundo para mim. Eu me lembrava, mas não sabia porque repetia essa frase sempre que o nome da minha irmã era mencionado. Coitadinha dela! Coitadinha de mim!
Por mais que todo o tempo em que estivemos juntas na vida tenham sido de 10 meses, depois disso apenas em 1 final de semana e 1 viagem depois disso - um tempo curtíssimo. Eu não compreendia a razão pela qual, desde os meus 2 anos de idade, me sentia tão responsável por aquele bebê que fora arrancado de mim, havia tantos anos. Como se a culpa fosse minha, como se eu tivesse feito algo errado, ou como se eu não tivesse tomado conta dela direito.
Passei toda infância sonhando com o dia em que brincaria de casinha com a minha irmãzinha. Reprimindo em mim aquele desejo absurdo de cuidar dela a cada vez que a via, nas rara e curtas visitas em que estive com ela. Nas visitas, rápidas, em que minha tia cochichava ao meu ouvido que eu não podia contar à ela que nós duas éramos irmãs. Apesar do absurdo daquela situação, eu obedecia sem protestar. Eu tinha apenas seis, sete, oito e nove anos, mas já sabia que iria precisar esperar pelo momento certo, que precisaria crescer e esperar que ela crescesse, para mudarmos aquela realidade que me causava tanto incômodo e dor.
Passei toda adolescência esperando pacientemente pelo dia em que ela tivesse a vida dela e que pudéssemos, como nos filmes, viver livremente toda aquela cumplicidade e amizade que havia nascido, há tanto tempo, naquele pequeno berço de madeira. Eu me lembro daquele berço com todos os seus detalhes. E me lembro das tardes - que pareciam eternas - em que passei deitada ao lado dela esperando que alguém chegasse para cuidar de nós. Eu não poderia trocar suas fraldas e nem fazer a sua mamadeira, mas me deitava ao seu lado e ficava passando a mão no seu rosto até ela dormir. Isso não foi ninguém que me contou, são coisas das quais me recordo como se tivessem acontecido agora mesmo. Estar em casa sozinha, deitada no berço ao lado da minha irmãzinha, que só tinha alguns meses, naquela casa de madeira sem pintura, é algo ainda hoje muito nítido nas minhas lembranças. Eu me sentia totalmente responsável por aquele bebê, sozinha com ela na casa. Coitadinha da neném! Eu repetia para as pessoas, mas ninguém de fato entendeu que eu sabia exatamente o que estava acontecendo. Eu mesma precisei de 47 anos para entender, de verdade, o que aquilo tudo significava e ligar os fatos às minhas antigas memórias.
Eu cresci, ela cresceu. Me tornei boa mãe. Aquele instinto maternal - desperto em mim quando tinha apenas dois anos de idade - me fez boa mãe, ainda que eu só tivesse 20 anos quando minha filha nasceu. Ainda que tivesse 16 ou 19 eu jamais teria ido embora ou deixado um bebê de 10 meses sozinho com uma irmã de apenas 2 anos e 10 meses. Ainda que eu tivesse esses mesmos 2 anos e 10 meses e soubesse cuidar desse bebê, eu teria cuidado. Teria alimentado e aconchegado em meu colo, mas tudo o que eu podia fazer, aos 2 anos, era me deitar ao lado dela.
O fato é que crescemos, nos tornamos adultas e, durante esses quase 48 anos, tudo que tivemos foi um único final de semana em que eu pude, finalmente, ser a irmã dela. Um único final de semana, que achei que seria apenas o primeiro - quando fui morar na mesma cidade que ela para fazer faculdade. Não foi! Aquele dia nunca mais se repetiu, nem mesmo quando viajamos juntas - anos depois - quando percebi que éramos duas perfeitas desconhecidas. Aquele final de semana nunca mais vai se repetir, porque a distância nos tornou pessoas completamente diferentes uma da outra.
Durante muito tempo eu tentei, de todas as formas, me aproximar e tomar de volta o meu lugar, mas todas as tentativas foram frustradas. Aos 15 anos me meti num ônibus, sozinha, por 650 km, sem nunca ter feito isso antes, e fui até ela. Mas, ela ainda só tinha treze anos e eu não poderia tomá-la de volta e fazer dela uma irmã. Ela já conhecia uma história completamente diferente da que eu conhecia. Já sabia, por exemplo, que tinha sido dada em adoção e que estava sendo criada como filha pelos meus avós, mas não sabia absolutamente nada a meu respeito. No quanto a vida já era difícil para mim, de quantos sofrimentos eu já tinha passado, mesmo tendo apenas 15 anos.
Ela cresceu achando que eu tinha sido escolhida para ir e ela para ficar. Quando na verdade eu também tinha sido deixada no lar dos meus avós. Eu não havia sido escolhida para ser amada, fui apenas um cabo de guerra de uma briga estúpida entre nossos pais. Ele não ficou por minha causa, tampouco me levou com ele, mas ela também não ficou comigo!
Há quatro anos, finalmente ouvi, do meu corajoso terapeuta, que eu nunca recebi amor pois não tinha cumprido a função para qual havia sido feita: a de segurar o homem amado ao fracassado casamento. Eu não cumpri minha função e a minha irmãzinha, de apenas dez meses, tinha piorado a situação. O nascimento da minha irmã o fez fugir - ainda mais rápido - com a outra. Nós três ficamos sozinhas. Nós duas ficamos sozinhas, em seguida. Eu fui disputada apenas porque a outra - a amante - me queria - e esse gosto ela jamais iria ter. Eu fui disputada, mas o vencedor nunca me amou. Minha irmã nunca conheceu esse lado da história, cresceu nutrindo por mim uma desconfiança e, talvez, algum rancor daquela que havia sido a escolhida.
O fato é que a irmã - nas palavras dela mesmo - teve seis irmãs, um pai e uma mãe. Nunca se sentiu abandonada, apesar de ter sido. E que essa dor - da ausência - era uma dor só minha. O que ela nunca soube é que eu também fui abandonada. Que eu também tive apenas o amor dos meus avós. Que fui uma criança amada, mas eu tive apenas avós. Jamais tive pais e nunca tive uma irmã presente. Também nunca tive nenhum rancor, eu apenas esperei, pacientemente, durante quase uma vida, pelo momento em que poderia reverter isso.
Hoje li mais uma vez, a penúltima conversa com ela, há 2 anos. Eu acabara de assistir a um filme chamado "Minha Irmã de Paris", em português. O filme contava a história de duas irmãs (gêmeas) que foram separadas aos 2 anos de idade. Uma ficou com a família paterna e a outra com a família materna, quando os pais faleceram. Uma delas sempre soube a verdadeira história, já a outra - assim como nós - não sabia que era adotada. Foi um mero acaso ter assistido a esse filme e fiquei impressionada com as semelhanças com a nossa história. Nem sei porque escrevi à ela. Talvez para lhe contar isso, porque não tinha outra pessoa para falar, alguém que pudesse entender, caso também tivesse visto o filme. Ela não queria falar sobre o filme. Afinal ela tinha uma família e aquilo não fazia o menor sentido para ela. Desconversou. Como desconversava sempre que eu tentava uma aproximação. Mesmo depois de nós duas termos nos tornado mulheres maduras, desconversava. Eu ainda sentia muita falta de falar com ela, como fizemos naquele único final de semana em 1999.
Minhas sobrinhas nasceram e cresceram sem que eu pudesse ter trocado uma única fralda que fosse delas. Minha filha nasceu e cresceu sem que a tia nunca a tivesse segurado nos braços. Meu filho cresce sem seu colo também. Aquele dezembro de 1974 foi definitivo no nosso destino. Para mim o pouquíssimo tempo em que estivemos juntas nunca foi o suficiente. Mesmo aquele final de semana falando sobre filmes e arte em 1999 ou aquela semana, em 2017, em que viajamos juntas e pude entender, pela primeira vez, que eu a havia perdido para todo sempre. Nós não nos conhecemos e, diferente dos filmes - onde não importa quanto tempo se passe - quando as irmãs finalmente se encontram acabam se tornando próximas. Nós nunca seremos ao menos amigas. Eu já não espero mais por essa redenção e nem que um dia teremos a cumplicidade e a amizade de verdadeiras irmãs. Lamento muito não ter podido viver essa relação. Mas, entendi que esse vazio nunca poderia ser preenchido. Passei muito tempo procurando, nas amigas, a irmã que havia sido roubada de mim, mas essas coisas não podem ser substituídas.
Cresci achando que quando fôssemos adultas poderíamos mudar o mundo juntas e romper todas as barreiras, mas algumas barreiras são intransponíveis. O filme me fez pensar em tantas coisas. Nós duas já tivemos, pelo menos, uns 25 anos para fazermos isso - transpor essas barreiras - e nos conhecermos. Agora isso dependeria apenas da nossa própria vontade. As barreiras hoje são colocadas por nós mesmas, por uma de nós ao menos.
Hoje estou conformada e bem resolvida sobre isso, mas me entristece saber que poderíamos ter reconstruído, do zero, a nossa história, se quiséssemos. O maior exemplo disso é a amizade e a cumplicidade que tenho hoje com a minha sobrinha, filha da minha irmã. Uma amizade que foi construída por nossa própria vontade. Um vínculo que decidimos ter e o construímos a partir do nosso único desejo. Sem memórias ou vivências anteriores. Essa talvez tenha sido a forma que a vida encontrou de me devolver algo que havia perdido há tanto tempo. Minha sobrinha me procurou quando mocinha, nos aproximamos, nos acolhemos, aprendemos nos amar incondicionalmente e desde então ela é a pessoa mais próxima que tenho na família de onde vim. Nós duas éramos duas completas desconhecidas - padecendo de uma falta parecida - e simplesmente decidimos nos tornar cúmplices, confidentes, amigas e quase irmãs. Ela me deixou ser sua tia. Me permitiu entrar na sua vida e ocupar o meu lugar nela. Me dá uma alegria imensa poder dizer: minha sobrinha se parece tanto comigo. Ou, simplesmente, olhar nossa foto juntas e identificar tantos traços em comuns. Saber que nosso DNA é algo tão incrível e forte que atravessou uma geração.
Foto: Divulgação Pagu Filmes e Incognita
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