segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Me livrei do câncer, e agora?


É outubro novamente e a cor rosa está, de novo, em todo canto. Eu não queria mais escrever sobre câncer. Eu só queria esquecer, se eu pudesse, que um dia eu tive câncer. Faz dez meses que não escrevo mais sobre isso. Mas hoje, eu quis falar sobre isso outra vez. Eu devo isso à você que, acabou de receber um diagnóstico de câncer de mama e, está totalmente apavorada e perdida -  como eu estive no começo de abril de 2018. É para você que eu preciso falar.

Nesse momento, se você resolveu abrir o jogo e contar para todo mundo como eu fiz, deve estar recebendo um monte de mensagens de apoio, de pessoas queridas dizendo que estarão ao seu lado e que você é: "guerreira", "forte", "determinada", "corajosa" e "vai tirar de letra". Mas, quando você está sozinha você chora, porque sabe que isso não é verdade. Por mais que seja bom ouvir essas mensagens de encorajamento você sabe que não é tão corajosa assim e que está sentindo o pior medo que já sentiu na sua vida. Que por mais que tenha uma rede de amigos, de familiares amorosos e pessoas que te apoiarão. Você nunca se sentiu tão só, tão absurdamente só, antes. Eu sei exatamente o que você está sentindo.

Há exatos 18 meses eu escrevia nesse mesmo blog um artigo chamado: "Estou com câncer, e agora?", se quiser ler basta clicar ai no título. E desde dezembro - quando terminei a parte mais pesada do tratamento não escrevi mais. Eu só queria esquecer que um dia eu tive câncer - como se isso fosse possível. Não é possível esquecer! Não tem como esquecer algo que está grudado em você e a cada vez que se despir aquela cicatriz imensa estará lá para te lembrar. Não tem como ser a mesma pessoa depois de um câncer, mas existe uma possibilidade muito grande de você se tornar alguém que se conhece bem. Eu não vim aqui trazer uma mensagem de desesperança para você. Ao contrário disso, eu estou aqui para te dizer que é possível sobreviver. Eu sobrevivi! Eu estou sobrevivendo dia após dia desde 16 de março de 2018.

Por mais aterrador que seja esse momento que você está passando. Acredite, quando te dizem que isso vai passar. É verdade! De uma forma ou de outra vai passar! Você não vai sofrer essa angústia terrível eternamente. Aos poucos você vai aprendendo a lidar com o diagnóstico e com cada etapa que virá. Por mais medo que você esteja sentindo agora, não deixe ele te paralisar. Corra! Corra desesperadamente atrás da sua cura, da sua chance de, como eu, sobreviver. Você não vai se tornar a pessoa mais corajosa do mundo, não espere por isso. Não espere se transformar numa heroína para ir. Vá! Vá com medo mesmo! Vá tremendo de medo, chorando de medo, apavorada de medo, mas por favor vá! Todos os dias eu agradeço por ter ido. Por ter corrido o mais rápido que eu pude. Foi o que me salvou.

Eu quero dizer pra você que nem a mastectomia, nem a quimioterapia é pior do que esse momento que você está vivendo HOJE. Descobrir um câncer, não saber a real extensão da coisa, não saber se está no início, no meio ou no fim é apavorante. Você deve estar pensando coisas horríveis. Imaginando que não estará aqui daqui um ano. Eu imaginei isso! Mas a verdade é que a gente não sabe absolutamente NADA sobre a doença, a não ser que passe por ela ou que esteja cuidando de alguém doente. 

Você deve estar com muito medo dos exames todos. Mas você precisa fazê-los. Nesse momento você vai descobrir que a gente é muito mais forte do que supõe. Que a gente é capaz de coisas que nunca imaginou. Que mesmo tremendo de medo você vai dar conta. Não tenha receio de chorar. Chore! Sofra! Sinta! Mas, por favor faça todos os exames que o médico te pedir. Eu sei que é um momento de muita angústia, meu estadiamento levou dois meses e mais vinte dias até o SUS autorizar minha cirurgia. Foram mais 15 dias esperando o resultado da biópsia final. Quatro meses sem dormir. Quatro meses olhando meu filho, de cinco anos, dormindo na caminha dele de madrugada e implorando por uma chance de vê-lo crescer.

Eu abri meus exames, todos! E sofri desgraçada e desnecessariamente por causa disso. Por favor peça ajuda, se não conseguir evitar, mas não faça isso. A gente abre os exames não entende porcaria nenhuma, corre pro google e ele vai te dizer que você está morrendo, mesmo que não esteja. Espere o parecer do seu médico, por mais ansiosa que esteja, espere o seu médico te dizer a real situação do seu caso. Ele não vai mentir pra você.

Não acredite que uma planta milagrosa vai curar você. Por favor, não abandone o seu tratamento convencional. Muitas vezes a planta que reagiu bem no organismo de uma pessoa, não vai funcionar para você. O que, comprovadamente, pode curar um câncer de mama é quimioterapia, radioterapia, cirurgia e tratamentos hormonais adjacentes. Fora isso é tudo especulação que as pessoas disseminam sem a menor responsabilidade. Por mais complicada que seja a sua situação, acredite, a medicina está bem avançada, em se tratando de câncer de mama, e é possível ter uma qualidade de vida mesmo em tratamentos paliativos. Nessa minha jornada, conheci pessoas que se tratam há 19 anos de metástases ósseas, vivendo relativamente muito bem. NÃO DESISTA!

Se afaste drasticamente, seja de quem for, que vier te contar casos terríveis de pessoas que sucumbiram à doença. De pessoas que de alguma forma te desencorajem. Algumas pessoas vão se revelar completamente cruéis ou sem noção alguma. Não permita que ninguém tire a esperança do seu coração. Não existe um tumor idêntico a outro. Cada um é único e reage de forma diferente em cada organismo, portanto não tem como comparar com ninguém. Já vi casos desoladores, no hospital, de me fazerem chorar, que a pessoa fez a cirurgia e o monstro não era tão terrível quanto se mostrava e a pessoa renasceu das cinzas. Já vi casos simples se complicarem também. Se concentre em si mesma e NÃO DESISTA! 

Aguente firme cada uma das etapas. Em algumas situações, mesmo que tenha alguém que te ama ao seu lado, existirão momentos, que você terá de enfrentar tudo sozinha. Por mais que estejam ao seu lado você terá que entrar sozinha naquelas máquinas de exames. É na sua veia que vão aplicar a medicação. Terão momentos em que você vai se sentir muito fraca, impotente, debilitada, quase sem forças, mas você vai passar por isso também! Quando você se olhar no espelho sem cabelos, com olheiras profundas, completamente frágil e insegura. Lembre-se: isso significa que o remédio está fazendo efeito. As pessoas se iludem muito com as aparências. No dia que eu descobri o câncer eu estava linda! Meus cabelos estavam do jeito que eu sempre quis ter. Meus seios estavam lindos - exuberantes. Minha pele saudável, sobrancelhas grossas - esse foi o momento em que estive mais doente. Nos dias em que estava mais debilitada, mutilada, cansada e destruída pela quimioterapia, eu me olhava no espelho e dizia a mim mesma: essa é a cara de uma pessoa livre do câncer. Nesses momentos eu ligava a música "Na estrada" da Marisa Monte, no último volume e cantava berrando junto, algo mais ou menos assim:

"Ela vai voltar, vai chegar! 
 E se demorar I´ll wait for you (eu esperarei por você)!
 Ela vem e ninguém mais bela, vem em minha direção!
 Seu horário nunca é cedo e quando escondo a minha olheira 
 É pra colher amor."

Doía muito me ver tão frágil, mas não tem como passar por um câncer sem algum tipo de dor. Eu chorava quando precisava chorar, sofria o que precisava sofrer, mas no dia e na hora marcada eu estava lá para enfrentar tudo e receber a minha cura.

Hoje, numa entrevista sobre o outubro rosa, para um jornal do Paraná, me perguntaram: "Quem é a Adriana depois do Câncer?" E eu respondi o seguinte:

Eu ainda estou no primeiro, de cinco anos, de tratamento. Em julho fez um ano que tirei a mama, o tumor foi completamente removido na cirurgia e não havia nenhum comprometimento por metástases. No dia 31 de outubro de 2019 faz um ano que terminei a minha última quimioterapia. Eu fiz uma quimioterapia adjacente, como prevenção. Comecei a tomar o tamoxifeno em dezembro. Há cerca de quinze dias fiz uma ooforectomia preventiva. Eu não tinha entrado na menopausa com o tamoxifeno e ainda estava com a produção hormonal muito alta, isso poderia ser ruim porque o tumor que tive foi causado por excesso de hormônios e eu precisava cessar a produção de estrógeno e progesterona. Depois disso tudo então eu hoje sou alguém em recuperação.

Uma pessoa se recuperando do trauma de ter tido um câncer. Se recuperando e aprendendo a conviver com as sequelas da mastectomia, da quimioterapia e da ooforectomia. Eu fiz apenas quatro ciclos da quimioterapia chamada "branca", mas as minhas doses eram altíssimas - normalmente se aplica 20ml, por eu estar forte e bem de saúde, tomei 80ml em cada sessão. Segundo a minha oncologista o meu organismo levará cerca de dois anos para se recuperar totalmente da quimioterapia. Falta um ano! 

A medicação tem efeitos colaterais como ansiedade e depressão. Além disso morei por oito meses longe do hospital onde me trato, dos amigos e familiares e isso me deu muita insegurança. Eu passei esse ano de 2019 muito deprimida, sem saber lidar com tantas informações e mudanças. Ainda não me reconheço no espelho. Às vezes me pergunto se aquela Adriana - do início de 2018 - vai voltar ou não. Eu ainda não sei. Talvez eu eu nunca mais deixe de sentir medo. Mas eu vou enfrentar cada um deles. Como enfrentei os últimos dez dias esperando o resultado da biópsia dos ovários. Como fiz, há dois meses, dirigindo sozinha, com o meu filhinho, de Porto Alegre até São Paulo para não perder meus exames e consultas.  Eu também estava apavorada no último dia 25 de setembro de 2019, quando entrei naquela sala de cirurgia para tirar os meus ovários, mas na hora marcada eu estava lá. 

Eu sou essa ai! Despeitada! Terei que encarar ainda pelo menos mais duas cirurgias plásticas, se quiser ter peito um dia de novo. Com uma cicatriz imensa que não me deixa esquecer que tive um câncer, mas que também me lembra que eu me livrei dele. Com os cabelos crescendo encaracolados pelas drogas da quimioterapia que ainda estão saindo do meu corpo. Uma mulher de 47 anos se refazendo dos efeitos da químio. Tendo que usar óculos porque a visão também foi afetada pelo tratamento, mas estou aqui... Me recuperando! E enquanto a vida permitir eu vou tentar ficar aqui por mais tempo. Tremendo, aterrorizada, morrendo de medo, mas farei o que for preciso pra ficar mais tempo com as pessoas que amo e criando meu filho ainda tão pequeno.


NOTA: Eu escrevi sobre a minha jornada em busca da cura, de abril à dezembro de 2018.
Basta clicar na TAG: Câncer.
E se você precisa ou se quer conversar sobre isso, mas não tem com quem falar. Me procure. Nos meus piores momentos o que mais me acalmou foi conversar com mulheres que estavam no meio ou no final do tratamento. Eu fui acolhida por essas elas, fui amparada e foram as únicas pessoas que realmente entendiam (e entendem até hoje) toda a complexidade do que estava/estou vivendo. Eu as chamo de amigas do peito. E eu quero muito fazer isso por outras mulheres também. Eu devo isso à você. 

Fotos: Acervo pessoal e Mulher Maravilha - divulgação (retirado do instagram da Fernanda Young)

Trilha sonora: Gunship - When you grow up your heart dies

segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Não, não ficou tudo bem!

Há algo muito errado acontecendo quando o seu garotinho de seis anos de idade sai na porta da escola, com um galo roxo enorme perto do olho, e diz que o "coleguinha" jogou uma garrafa de água nele. E há algo ainda mais errado quando o bilhete, na agenda, diz algo diferente do que realmente aconteceu.

Há alguns meses nos mudamos de São Paulo para Porto Alegre. Desde então a nossa adaptação não tem sido fácil. As diferenças, inclusive as culturais, são imensas e isso é apenas a ponta do "iceberg". Existe um incômodo real desde que chegamos aqui. Não é apenas o fato de não estarmos nos encaixando, existe uma atmosfera estranha no ar. Se você não é daqui e não veio pra ficar, possivelmente vai enfrentar problemas. Se você não morre de amores por chimarrão, se não liga pra  churrasco, se não acha as coisas regionais a oitava maravilha do mundo e não incorporou todas as regras e tradições - que estão em todos os lugares - e nos são sutilmente impostas, você vai ter muitos problemas! E eu nem vou entrar em questões mais polêmicas que tenho presenciado envolvendo racismo, machismo e preconceitos de todos os tipos. 

Já tive o meu carro riscado, com muita raiva, bem pertinho da placa, onde se lê "São Paulo - SP". Já fui chamada de "crespinha", porque meus cabelos estão nascendo encaracolados depois da químio. Já ouvi toda gama de comentários racistas, machistas, separatistas e preconceituosos em diversos lugares. Já tive que discutir com o porteiro que não queria deixar uma catadora de papel subir para buscar umas caixas que eu havia lhe dado. Já fui tratada com desdém 'N' vezes em diversos lugares, já me assustei com a quantidade de adesivos espalhados pela cidade onde se lê: "o sul é o meu país!". Já fui abolida do grupo do condomínio por não gostar de chimarrão e fofocas às 17h, já fui chamada de "animal" por estar fazendo uma manobra absolutamente correta para estacionar. Já voltei chorando para casa várias vezes por me sentir uma perfeita estranha nesse lugar. Até ai a gente engole o choro, a saudade, se faz de surda e segue o barco para poder continuar. Mas quando essas diferenças atingem seu filho a coisa muda muito de figura.

Tomás só tem seis anos de idade. Até quatro meses atrás estudava numa escolinha maravilhosa, tinha muitos amigos e o Parque Ibirapuera era o quintal da sua casa, onde - praticamente todos os dias - vivia mil aventuras. E ele é um garotinho incrível. E não digo isso apenas porque ele é o meu filho, mas porque eu sou capaz de identificar todas as suas peraltices, mas também as suas belas virtudes. O Tomás é um menino bom! Tem um coração de ouro. Não é raro ouvir alguém dizer que ele é muito educado e uma criança muito boa. Recentemente, na sua festinha de aniversário, quando fomos cortar o bolo eu lhe perguntei: "de quem é o primeiro pedaço?" e ele respondeu: "é do Fulano, porque ele é o meu melhor amigo aqui da escola!". O Fulano, em questão é uma criança autista, que segundo a própria professora, muitas vezes as crianças não querem brincar ou sequer sentar ao lado dele. E, ainda de acordo com a professora, o meu filho a emocionou muito, porque desde o primeiro dia de aula ele entendeu as dificuldades do amigo e passou a protegê-lo. 

Tudo caminhava relativamente bem até que o Tomás começou a reclamar muito do "Ciclano", um coleguinha de turma da mesma idade dele. Um dia chegava dizendo que o Ciclano falou que o cabelo dele é feio, outro dia disse que o Tomás não devia existir, que o meu filho era isso e aquilo. E o meu menino passou a não querer mais ir para escola. Por mais que eu argumente dizendo que é normal alguém não gostar da gente e que ele devia tentar conversar com o amiguinho, nada tem adiantado muito. Todos os dias é a mesma ladainha na volta da escola: o Ciclano me empurrou, o Ciclano falou que eu sou um idiota. Até que há alguns dias, conversando sobre o assunto, ele me disse algo que me fez perceber a gravidade disso tudo: "...mamãe a gente é criança e criança briga briguinha boba. Era assim lá em São Paulo, a gente brigava, mas logo fazia as pazes, mas com o Ciclano não. Por mais que eu tente ficar amigo dele, parece que mais ele me odeia". Eu achei aquilo muito pesado. Resolvi dar um toque na escola e falei de como as coisas que o Ciclano dizia estavam afetando o meu filho. Naquele dia recebi um bilhete da escola, dizendo que providências foram tomadas. 


Logo depois ele teve uns dias de férias. Ele já estava tristinho por ficar trancado em casa - por conta do frio e da chuva e porque as crianças do condomínio não querem brincar com ele. Já voltou pra casa chateado, diversas vezes, porque chamaram ele de "ovelha" por causa dos seus cabelinhos cacheados, porque não deixaram ele brincar, porque não respondem quando ele pergunta. E o meu garotinho que sempre foi uma criança alegre, falante e entusiasmada, foi ficando cada vez mais agitado, gritando e dizendo coisas agressivas até para nós, seus pais. As aulas voltaram e ele foi para escolinha, entre receoso e feliz. Já no primeiro dia voltou reclamando que o Ciclano não deixava ele brincar com ninguém, porque ele fala "você" em vez de "tu". Eu conversei com ele, disse para ele não levar as implicâncias tão sério e que logo ele teria mais dez dias de férias, pois irá comigo para São Paulo, na próxima quarta (07/08/19), e que lá vai rever os amiguinhos, que vai todos os dias no Ibira e no Manequinho e que o levarei na antiga escolinha para ver a professora, que ele ama de paixão. Ele ficou todo feliz.

Hoje quando fui buscá-lo, ele chegou todo agitado, falando muito alto - ele está cada dia falando mais alto e num tom agressivo que nunca teve. Quando chegou perto de mim, percebi um galo roxo enorme na fronte dele. Galo equivalente ao que ele teve quando teve uma queda bem violenta, de bicicleta, na descida da passarela do MAC - Museu de Arte Contemporânea de São Paulo. A auxiliar da escolinha, que o entregou a mim, disse que ele estava brincando bem com o Ciclano que "sem querer" jogou um brinquedo na parede e acertou o Tomás. Eu fiquei sem reação na hora. Tentei ver o machucado, mas ele não deixou. Pedi, na frente da auxiliar, para ele me contar o que tinha acontecido, ele respondeu que me contaria no carro. Insisti para ele me contar, ele só disse: "o fulano jogou uma garrafa de água em mim", dai olhou para a moça e completou: "mas foi sem querer mamãe.". Eu só consegui pegá-lo no colo e dizer: "isso nunca aconteceu antes com você meu filho!". Tirei uma foto dele para mostrar pro pai dele e li o bilhete na agenda. 


Eu entrei no carro e perguntei para ele o que houve, se eles estavam sozinhos na hora, se ninguém tinha visto. Ele disse que uma das auxiliares estava com eles. Que ela havia dito para ele não ficar triste porque o Ciclano não fez por querer. Eu perguntei para ele se ele achava que tinha sido sem querer ele respondeu: "sim, mas o Ciclano não gosta de mim, então pode ter sido por querer, mas a professora falou que era sem querer então eu acreditei...".

Olha, a mim não interessa mais se o Ciclano fez ou não por querer. O fato é que uma criança que joga uma garrafa - ou mesmo que fosse um brinquedo, com tal violência contra a "parede" - é uma criança que está precisando de atenção ou está passando por algum problema.

Uma criança de SEIS ANOS não pode, não tem capacidade de odiar um coleguinha. Não se ela não for ensinada, de alguma forma, a fazer isso. Nenhuma criança de seis anos é capaz de, sozinha, não gostar de um coleguinha por causa do seu cabelo ou do jeito que ele fala. As crianças, todas elas, tendem a repetir o padrão dos adultos. E se eu já estava bem preocupada do meu filho viver num lugar onde, a maioria esmagadora das pessoas na praça de alimentação dos shoppings, não recolherem os próprios lixos, de não respeitarem os sinais de trânsito ou do coleguinha de escola dizer insistentemente que não gosta dele. Agora eu estou desesperada de medo, de que o meu filho ache normal um coleguinha tacar uma garrafa de água na cara dele, ou que ache bonito, como já tem feito, olhar para nós, apontar e rir debochadamente quando o corrigimos ou passamos por alguma situação chata, como deixar algo cair. O meu menino, que chegou aqui um lordezinho, tem estado impaciente, exigente e vive irritado com qualquer coisa.

Eu ainda não sei o que vou fazer a respeito. Não faço ideia de como vou lidar com isso e estou bem triste com o desenrolar de tudo. Meu filho que, chegou nessa escolinha e, foi considerado uma criança educadíssima, criativa e feliz. Agora está triste! Não quer mais ir para a escola de jeito nenhum. Não para de dizer que ainda é da turma da escolinha antiga, que sente falta da tia da outra escola. Da tia querida, que não esquece dele e que até hoje manda áudio no whats app para ele, e diz que o ama. Ainda não faço ideia de como vou resolver essa situação. Mas a única coisa que eu sei é que eu não o quero achando todas essas coisas normais. Que aceite ser manipulado, enganado, maltratado ou subornado. Eu não sei ainda como vou lidar com isso tudo, mas a única coisa que eu sei é que preciso ver a alegria no olhar do meu filho outra vez. Que preciso vê-lo feliz, correndo na chuva, andando de bicicleta por aí com os amiguinhos, rindo e sendo uma criança inocente por muito mais tempo ainda. Ele é amado demais para não ser feliz.






Fotos: Acervo pessoal
Trilha sonora: Titãs - Não vou me adaptar

quinta-feira, 25 de julho de 2019

Malditas estrelas!!!

Outro dia Tomás chegou da escolinha muito chateado, volta e meia ele volta chateado da escola, disse que estava triste porque havia se comportado muito bem, durante toda tarde, e mesmo assim não tinha ganho uma "estrelinha".

Eu perguntei-lhe que "estrelinha" era essa e ele me explicou que são estrelas que cada criança ganha quando se comporta bem e que no final do mês a criança que tiver mais estrelas vai ganhar um chocolate. Eu expliquei à ele que as regras da escola não se aplicam ao nosso lar - e preciso repetir isso à ele todos os dias quando volta da escola. Que sentia muito por ele não ter recebido a tal estrela, mas que ele não precisava ficar triste, porque ele não precisa de estrela nenhuma para se comportar. Que ser um garotinho gentil, educado, observador das regras e atencioso com as pessoas não implicaria em receber algum prêmio por isso. Disse-lhe que ser bem educado era um dever, de qualquer um que quer ser uma boa pessoa, mas que fazer isso simplesmente esperando algo em troca não era legal. Disse-lhe que o nome disso é "suborno" e em casa nós não subornamos e nem chantageamos as pessoas.

Depois dessa nossa conversa fiquei pensando na gravidade dessas "inocentes" estrelas e no que elas significam de verdade. Nada mais que uma forma de controlar as crianças, um meio mais fácil de fazê-las se comportar como os adultos querem que elas se comportem. Por que cargas d´água estamos ensinando nossas crianças, desde a mais tenra idade, a serem subornadas, chantageadas e enganadas? Por que precisam mentir tanto para uma criança para que ela faça o que os adultos querem? Diego e eu escolhemos jamais mentir para o nosso filho e sinceramente temos conseguido que ele nos ouça e faça aquilo que lhe pedimos muito mais fácil do que vejo outros pais tentando.

Quando ele tinha dois anos, e ainda chupava chupetas, uma vez, uma pessoa que nunca havíamos visto antes, chegou nele e disse: "dê sua chupeta para o Papai Noel que dai ele te trás um presente!". Ao que eu imediatamente retruquei: "não filho! Você deve parar de chupar chupeta porque vai entortar todos os seus dentinhos e fazer com que isso atrapalhe você no futuro!". Quando ele me entregou a chupeta, pouco tempo depois, me disse que não queria mais chupá-la para não estragar os dentes. Não raro escutamos coisas como: "se você comer tudo vai ganhar sobremesa!", enquanto eu lhe digo: "olha filho a gente precisa comer, porque é a comida que nos sustenta e nos mantém vivos, se você não comer não vai receber as vitaminas que precisa, vai ficar fraquinho, doentinho e não vai ter energia pra brincar." E ele come de tudo, inclusive brócolis e rúcula - se realmente estiver com fome. Eu dou frutas de sobremesa para o meu filho, então não há nenhum problema em casa se ele resolver comer só a sobremesa.

São muitos os "subornos" que os adultos fazem com as crianças e eu acho isso muito grave. Acho até que é a origem de todos os problemas mais infelizes que vemos na humanidade. Porque começa assim: "se você comer tudo ganha sobremesa", "se der a chupeta prô Papai Noel ele te trás um presente", "se passar de ano ou se tirar notas boas te dou uma bicicleta!", "se você arrumar seu quarto te dou uma mesada!", "se você passar no vestibular te dou um carro!" e termina com: "se você me der as licitações eu te dou um mensalão!". E não acho que estou exagerando aqui. Pois eu realmente acredito que todas as mentiras, chantagens e subornos que as crianças ouvem, muitas vezes de seus próprios pais, vão construindo o ser corrupto que chega à maturidade.

Uma criança nasce, como costumo dizer, zeradinha. Uma folha em branco sem nenhum defeito, nenhum preconceito, nenhum racismo, nenhuma corrupção. E enquanto ela cresce nós, os adultos, que deveríamos protegê-las e ensiná-las a ser a nossa melhor versão, somos os primeiros a corrompê-las! Uma criança não sabe mentir, ela aprende isso, muitas vezes, em casa com os próprios pais. Quando o telefone toca e a mãe pede à criança: "diga que eu não estou!". E quando essa criança descobre, quando começa a crescer, que "coelhinho da páscoa", "papai noel", "fada do dente" e zilhões de outras coisas nunca existiram - é uma grande frustração. Há quem venha me dizer: "mas é lúdico!" e eu digo: "o lúdico, as fantasias e imaginação infantis - tão bem vindas - não têm nada a ver com mentiras!". Nós nunca mentimos para o Tomás, que tem seis anos, e ele é uma das crianças mais criativas e imaginativas que eu já conheci. Ele curte o Natal, adora tirar fotos com o Papai Noel, mas ele sabe que é só o cara do Shopping vestido com uma fantasia legal.

Desde quando estava grávida do Tomás eu venho pesquisando, lendo e aprendendo sobre como as coisas que dissemos a uma criança - por mais inocentes que pareçam -  podem impactar na sua vida futura. E cada vez mais me preocupo, não só com as coisas que dissemos à ele em casa, mas principalmente com as coisas que ele escuta fora do nosso alcance. E todos os dias quando o meu filho volta da escola eu tenho a árdua e exaustiva tarefa de explicar, novamente, todas as coisas tortas que ele escuta. 

Preciso lhe dizer inúmeras vezes que ele pode brincar do que ele bem entender! Que não existe brincadeiras de meninos e brincadeiras de meninas, que ele pode gostar de qualquer cor - qualquer uma inclusive de rosa, pois é só uma cor -, que ele não precisa ser o número um em nada e que se ele não aprendeu algo hoje ele tem a vida toda para aprender, que não precisa ter pressa. Preciso lhe dizer todos os dias que o cabelo dele é lindo, que ele é um garotinho maravilhoso e que todas as coisas más que ele escuta não devem importar para ele. 

Em 2017, quando escrevi o texto "Mãe de Menino"*, eu já previa que tudo isso iria acontecer em breve. Só não imaginava que seria assim tão difícil ver o meu filho descobrindo que o mundo pode ser tão cruel com garotinhos de seis anos de idade. Que ele seria impedido de brincar, com a boneca "baby alive" da amiguinha, por ser brinquedo de menina. E quando lhe perguntei o que ele achava disso, ele me respondeu: "ah! acho que a "fulana" brinca que o pai do bebê dela morreu e ela precisa cuidar dele sozinha, porque senão ela me deixaria brincar com ela e ser o papai na brincadeira!". E eu senti um misto de alívio, tristeza e uma preocupação imensa, pois se eu não quero que ele seja manipulado, nem eu posso fazer isso. E se nem eu, a mãe dele, o manipula, não posso permitir que outras pessoas o façam. Eu preciso protegê-lo, pois ele é o garotinho mais incrível e feliz que eu já conheci nesse mundo.
Por mais cansativo que seja ter que explicar tudo de novo o tempo todo para o meu filho eu ainda agradeço por ter tempo e disposição para isso. Eu não posso vencer esse sistema absurdo sozinha -  essa ânsia que as pessoas têm de querer ser a qualquer custo "o número um", o melhor, o mais isso e o mais aquilo - mas, felizmente ainda posso educar o meu filho para ser feliz e não um vencedor. Mesmo porque, na verdade, só há três lugares no pódium - e para os mais desesperados apenas UM. É muita gente para pouca medalha de ouro. Sem querer ser pessimista, já que conheço muita gente bacana e empenhada em ter filhos felizes, mas teremos, num futuro próximo pouco pódium para muita gente frustrada e infeliz.

*Mãe de Menino - clique aqui para ler a postagem. 

fotos: acervo pessoal



domingo, 13 de janeiro de 2019

Ibira Mon Amour



Todo mundo, ainda que não saiba, tem o seu lugar preferido. O seu lugar preferido no mundo todo, como costumo dizer. O meu, sem a menor sombra de dúvidas, se chama Ibirapuera. Desde a primeira vez que visitei o parque, ainda criança, fiquei encantada com toda imensidão e beleza diante dos meus olhos.

Existe um momento na vida da gente em que, mesmo sem perceber, decidimos as coisas que serão sempre uma parte importante da nossa vida. Naquela tarde distante, no início dos anos 80, em que passei umas poucas horas correndo pelo parque, eu declarei que aquele era o meu canto favorito do mundo. Eu devia ter uns 12 anos. Logo depois fui embora para longe.

Anos mais tarde eu estava de volta. Vim à passeio, mas quando reencontrei o meu paraíso particular, eu já não podia mais viver sem ele. Voltei de vez! Voltei pra ficar (ao menos é isso que eu imagino). E não bastava mais morar na mesma cidade e frequentá-lo de vez em quando. Eu precisava vivê-lo, precisava respirá-lo e estar aqui sempre que quisesse. Há treze anos moro ao lado do parque, que chamo de meu quintal.

Quase todas as manhãs, quando o dia começa despontar, eu calço meu tênis e é lá que eu saúdo o meu novo dia. É para lá que corro sempre que acontece algo comigo. Qualquer coisa! É entre as suas generosas e frondosas árvores e o barulho dos pássaros que eu enxugo as minhas lágrimas, agradeço as felicidades, curo minhas dores e me sinto viva.

Foi para lá que eu corri imediatamente quando apareceu um nódulo no meu seio esquerdo, e eu nem sabia ainda o que era. Foi para o Ibirapuera que eu contei primeiro o meu maior temor naquele momento. 

Dias depois, já com o diagnóstico de "carcinoma ductal invasivo", eu corria novamente para o meu bosque. E olhando aquele verde intenso, a cor mais linda que já vi, eu chorei alto o meu choro mais dolorido, e em seguida decidi que queria continuar viva, que queria continuar levando meu filho todas as tardes para que ele continue crescendo nesse lugar. 

O Ibirinha, como carinhosamente Tomás e eu o chamamos, me acolheu, como sempre. Muitas vezes eu já entrei despedaçada, com o coração apertado, nas suas trilhas e enquanto corria ia me refazendo, me consertando, me remendando e curando.  Com o câncer não foi diferente.

Quando você recebe um diagnóstico complicado desses, é impossível não pensar na efemeridade da sua existência. Quando encarei de frente o fato de que não viverei eternamente e fiz o meu balanço interno, sendo o mais honesta possível comigo mesma, surpreendentemente descobri que poucas coisas ainda me prendem à esse mundo. Eu partiria com saudades de muitos amigos, familiares e pessoas queridas. Muitas mesmo, mas eu estaria pronta para dizer até logo a todos eles - porque eu realmente acredito em um até logo. Mas, não poderia ainda dizer isso ao meu marido e meus filhos. E quando pensei no que mais me faria falta nesse mundo, em todos os lugares onde já estive, onde fui feliz e gosto, de todos eles o único lugar que me fez chorar, por ter que deixá-lo, foi o Parque Ibirapuera. 

Desde que voltei morar em São Paulo e viver ao lado do parque, todos os grandes acontecimentos da minha vida passaram a ter uma relação direta com ele. Depois de sonhar tantos anos com o amor da minha vida, foi ali, no gramado do laguinho, que percebi o quanto estava apaixonada - pela pessoa mais incrível que eu já havia conhecido. Naquele dia eu realizei um desejo que guardava, há muito tempo, de ter um dia inteiro perfeito: com o céu azul sem nenhuma nuvem, a grama verde numa tarde quente. Foi olhando as carpas no jardim japonês, que há dez anos Diego me pediu em casamento. E foi lá, no Ibira, que eu disse o melhor e mais importante sim de toda a minha vida.

No mesmo lugar onde chorei a morte do meu avô e me curo da dor da sua ausência, cinco anos depois, nas mesmas trilhas, me mantive saudável, durante toda a gestação do Tomás.  O Parque foi o primeiro lugar onde eu levei o meu filho, recém nascido, para passear. Ele tinha apenas 15 dias. E ali ele mamou no meu seio, aprendeu a engatinhar, a caminhar, correr, andar de bicicleta e aprenderá a patinar em breve. É onde ele vive as suas aventuras e fantasias mais incríveis. Ele está crescendo tendo a floresta encantada como testemunha. Ele só tem cinco anos, mas já ama o parque tanto quanto eu.

Todas as tardes livres, em que eu pergunto ao Tomás o que ele quer fazer, a sua única e certeira resposta é: "eu quero ir no Ibirinha!". Isso me enche de orgulho e felicidade. O Ibirapuera não é apenas um lugar para nós. Ele é o nosso quintal. É onde o meu filho, apesar de morar em apartamento, numa cidade grande, pode correr livre, tomar banho de chuva, colher frutas no pé, subir em árvores, conhecer pássaros, ver animaizinhos e ter a mesma liberdade que eu tinha na minha infância vivendo numa cidadezinha com menos de dez mil habitantes. 

Tomás é uma das crianças mais felizes que eu já conheci. Tenho certeza que esse pedacinho de chão é o responsável por isso. Ele é dono das tardes mais perfeitas que uma criança poderia ter. Seja com amigos ou sozinho, ele sempre volta, sujo, cansado e intensamente feliz para casa. E eu sei que ele está criando as melhores lembranças que terá na vida.

O mais impressionante é que nós nos sentimentos completamente retribuídos nesse amor. Em cada sombra de árvore num dia quente, em cada brisa fresca que sopra do lago e em cada folha seca caída no chão.

Eu tenho o privilégio imenso de poder escrever e falar sobre isso na "Revista do Ibirapuera". Até isso consegui juntar: o meu lugar preferido no mundo com o que eu mais gosto de fazer nessa vida. Escrever. É uma troca intensa de amor. O Ibirapuera se tornou o meu lar e da minha família.

Eu não sei o que o futuro me reserva. Talvez eu precise, um dia, dizer até breve a este meu lugar tão querido. Mas certamente um pedaço grande do meu coração vai sentir muito. Vai doer demais esse "até logo!" Quando penso em quantas coisas já vivi nesse lugar e em quantas coisas ainda quero viver, uma vida inteira parece tão pouco. Eu quero envelhecer e continuar a caminhar ao lado do meu filho e marido por entre essas árvores e trilhas. Quero poder apresentá-lo a tanta gente ainda, continuar descobrindo coisas novas a cada dia e poder um dia ver meus netos redescobrindo tudo de novo. 

Enquanto eu me curava do câncer o Ibira também me curava e muitas outras coisas. Era onde eu me desesperava e me refazia. Era o único lugar onde eu me sentia à salvo nos piores dias. Era onde recobrava minhas forças durante a quimioterapia e recarregava as baterias para mais um ciclo.  Talvez eu não tivesse me restabelecido tão bem, a cada ciclo, sem esse oásis por perto. Eu ainda estou me recuperando da jornada. É por entre os seus caminhos que eu me silencio e escuto a minha voz interior, onde me encho de coragem e esperança para continuar.

Gratidão é tudo o que define o meu sentimento ao Ibirapuera nesse instante. E espero que todas as pessoas, que um dia estiverem à frente desse lugar, saibam que ele é muito mais que um lugar onde se pode lucrar. Ele simplesmente é a razão de viver de algumas pessoas. Então espero que cuidem bem, preservem-no e não o tratem como apenas mais um meio de se fazer dinheiro. O Ibira é o lugar onde quero estar por toda eternidade quando as minhas cinzas forem tudo o que restar de mim.
(Rua do "Arigatô" - Obrigado)