Essa ai ao lado sou eu, vista pelo meu filho Tomás que tem cinco anos. É a melhor definição de mim nesse momento da minha vida. Em poucas linhas ele conseguiu colocar no papel exatamente um resumo exato meu: uma pessoa nua com um peito só, costurada do lado esquerdo e alguns fiapos de cabelos que insistem em crescer.
Ninguém passa por uma quimioterapia sem sofrer alguma transformação e sem se tornar, talvez, um pouco mais humilde. Não é apenas por sentir as drogas, literalmente, percorrendo cada célula do meu corpo. Enquanto sinto o gosto amargo e metálico tirando o meu paladar, o estômago embrulhado - tirando o prazer de todas as coisas que eu gostava -, as agulhadas espalhadas pela minha pele - excitando cada um dos meus neurônios - e essa dor de cabeça estranha - diferente de todas que eu já senti, estou mudando completamente a minha composição. Não apenas a física, mas toda a estrutura emocional também.
Há um ano eu sequer poderia imaginar que um dia estaria imersa numa situação tão inédita. Num misto de sentimentos tão contraditórios: ao mesmo tempo em que me sinto completamente grata por tantas descobertas e enfrentamentos sobre mim mesma, me sinto tão frágil, insegura e impotente diante de tantos efeitos colaterais. Eu sei que é temporário, mas estou aqui e agora inserida nesse momento, que parece não ter fim. Sei que vai passar, que está passando rápido - só falta mais um ciclo-, mas o resultado da última aplicação ainda lateja no meu corpo - ainda preciso me recuperar dessa e me preparar para a próxima - e cada vez parece mais intenso e longo. Não tem como não pensar nas sequelas e consequências quando ainda se está vivendo a coisa toda.
Você sente, e se dá conta de, cada ossinho e de cada veia do seu corpo. Cada um dos meus neurônios estão perceptíveis pra mim e não sei ainda quanto bem ou quanto mal essa droga, passeando agora pelo meu corpo, está me causando. Estou enxergando tão mal! O meu processo de presbiopia foi drasticamente acelerado pela quimioterapia. Tenho esquecido palavras do meu cotidiano, como brócolis - que como todo santo dia -, por exemplo. Ando tão ansiosa, com os ouvidos constantemente entupidos e os nervos à flor da pele. A quimioterapia te deixa muito deprimida, muito mesmo! Não estou conseguindo ler mais e ver um filme inteiro sem dormir é uma verdadeira conquista - felizmente ainda consigo escrever. E essa sensação metálica, como se estivessem esfregando uma palha de aço em cada um dos seus ossos, te deixa em constante alerta e você já não se lembra mais como era a sua vida antes dela. Os meus músculos latejando já deixaram de me divertir faz algum tempo e eu só queria que parassem de se mexer assim, sozinhos.
Eu, apesar de compreender, sempre fico pensando quando pessoas queridas me dizem frases prontas - repetidas inúmeras vezes na tentativa de me fazerem me sentir melhor. Que eu não sou uma "guerreira corajosa que está tirando isso tudo de letra". Não mesmo! Eu só sei que querendo ou não, com medo ou não, forte ou fraca é algo da qual eu não tenho como fugir. É algo que eu não tenho outra alternativa a não ser enfrentar. E fico pensando em tantas pessoas, tão incríveis, que tenho conhecido - que não tiveram a mesma sorte que eu de descobrir a doença no início - e mesmo elas sendo tão mais corajosas e determinadas que eu talvez não se curem. Penso no quanto aquela senhorinha idosa, tão frágil, tomando doses muito maiores que as minhas e indo embora pra casa sozinha, é infinitamente mais forte e corajosa que eu. Tive vontade de abraça-la, de segurá-la no meu colo e cuidar dela como se cuida de um bebê.
Eu não reconheço mais a minha imagem no espelho, além da aparência, há algo no olhar, algo que eu não consigo identificar, mas que não é mais familiar para mim. A quimioterapia não está destruindo apenas células cancerígenas (se ainda havia alguma) ou apenas as células boas do meu corpo (o que provavelmente está acontecendo). É muito mais que isso, ela está destruindo completamente parte do que eu sou. Ao mesmo tempo em que sinto essa imensa gratidão pela oportunidade de estar aqui, nesse exato instante, me curando completamente de uma doença mortal eu também sinto esvaindo de mim grande parte de quem eu sou ou de quem eu fui.
meu desenhista preferido no mundo inteiro
Fotos: Adriana Mani
É um processo, minha querida. Dentre os muitos que passamos na vida, que vc já passou. A gente nunca é a mesma, estamos sempre em constante mudança, isso é evolução. Dói, estranhamos, as vezes nos revoltamos e questionamos o processo, mas é necessário. Não há nada nem ninguém que possa fazer ser mais suave, quando chega o(s) momento(s) de mudança de cada um. É se entregar, confiar, e fazer o que puder pra que seja bom. E isso eu sei que vc faz e muito bem.
ResponderExcluirApenas viva o processo, minha amiga. Não se preocupe com o que já foi. O que passou, passou. E isso tb vai passar. O que vai ficar é uma nova Dri, com uma nova vivência, uma nova experiência, um novo olhar sobre a vida e sobre si mesma. E tudo bem!Celebremos!!!
Aceita, entrega, confia e agradece.
Te amo!