segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Pertencimento

Um vez, quando era voluntária em um orfanato, um dos garotinhos que eu visitava me chamou de lado e pediu: "tia, posso falar para os meus amigos que você é minha mãe?".  Eu fazia parte de um grupo que visitava as crianças. O lar acolhia os órfãos e temporariamente crianças, que eram retiradas das famílias, vítimas de abusos e maus tratos e estavam em processo de reabilitação. Todas as quintas os temporários recebiam a visita dos familiares. O Pedro, de 4 anos, era um dos órfãos. Ele foi deixado na maternidade no dia em que nasceu.  Nosso grupo ia até lá para ficar com essas crianças que não recebiam visitas.

Os pequenos chegavam ao lar nas condições mais complicadas. Vítimas de abandono, violência e todo tipo de abusos físicos e psicológicos. A maioria trazia as marcas das agressões na pele. No abrigo vi garotinhas muito pequenas chegarem com queimaduras de cigarro e hematomas por todo o corpo. Alguns eram tão doces que você se perguntava como alguém poderia ser capaz fazer tanto mal a um ser tão angelical como aquele. Outros traziam dentro de si toda a brutalidade com que eram tratados.  Eles conversavam e falavam de suas agruras entre eles. Todos sabiam o tipo de pais ou responsáveis aquelas crianças tinham em casa. Mesmo assim o Pedrinho preferia ter uma dessas mães abusivas a não ter nenhuma.

Era a minha primeira visita, a primeira vez que eu o via e foi a primeira coisa que ele me pediu. Eu deixei que ele dissesse para todo mundo que eu era sua mãe! Naquele dia ao me despedir, ele me abraçou forte e disse que me amava muito. Fazia apenas algumas horas que eu o tinha visto pela primeira vez. Aquela criança precisava de tudo, tudo mesmo: alimento, roupas, sapatos, brinquedos, liberdade e atenção. Mas, se ele pudesse escolher uma única coisa, uma só, ele escolheria ter uma mãe, por pior que ela fosse.

Durante os dois anos de voluntariado, todas as quintas, por algumas horas, eu deixei o Pedro me chamar de mãe. E ele continuou me chamando assim, mesmo quando todos já sabiam que eu era apenas voluntária lá. Isso foi em 1999, o Pedro já deve ser um homem feito. Tenho pensado muito nele ultimamente. Não faço ideia de onde ele está e o que tem feito, mas desejo muito que ele tenha encontrado uma mãe.

Mais do que qualquer outra coisa, todos precisam ser parte de algo. Pertencer a alguém. Quando aquela pessoa, que deveria dar segurança afetiva, vai embora deixa um imenso vazio em quem fica. Por mais que outra pessoa cuide dessa criança, se não assumir a maternidade pra valer, aquele vazio nunca será preenchido. E essa carência afetiva faz com que se aceite qualquer migalha de afeto. 

Ninguém está preparado para o abandono e a rejeição materna, muito mais que a paterna. Uma criança rejeitada vai se tornar um adulto com enormes dificuldades na vida. Tudo o que acontece na primeira infância é determinante para a saúde psicológica de qualquer pessoa. Uma criança que precisa lidar muito cedo com o abandono dos pais e a falta de segurança, terá uma probabilidade muito grande de se tornar uma pessoa insegura, para dizer o mínimo. 

Espero que o Pedrinho tenha encontrado esse porto seguro. Alguém que pode fazer mais do que deixá-lo fingir por algumas horas. Eu fiz tudo o que eu poderia fazer naquele momento, não me culpo por isso. Eu não tinha como adotá-lo, embora tivesse desejado muito fazer isso. Tudo o que eu pude lhe dar foram aquelas horas das minhas visitas, os meus beijos, abraços e os sinceros "eu te amo".  Quando precisei me mudar de cidade conversei muito com ele. Foram dois meses de preparo antes que outra menina assumisse o meu lugar nas visitas. Uma das coisas mais importantes que ouvi da diretora do lar, quando me voluntariei, foi que eu precisava me comprometer para valer. Não poderia ir algumas vezes e depois simplesmente parar de ir. Aquelas crianças, tão traumatizadas, vinham de perdas recorrentes e elas não poderiam se apegar a mais uma pessoa que as abandonaria em seguida. Mesmo tendo cumprido todo o protocolo, mesmo tendo deixado uma pessoa muito amável e comprometida em meu lugar, eu sempre me entristeci por deixá-lo. Eu não queria ter sido mais uma pessoa na vida dele a ir embora.

Hoje, quando penso nele, percebo que nós tínhamos tanto em comum. Embora eu tenha sido criada pelos meus avós em um ambiente amoroso, sempre tive as minhas inseguranças e carências. Nas minhas lembranças infantis há sempre uma despedida, há sempre alguém importante indo embora. Mesmo meus avós tendo assumido a minha criação, eles não puderam assumir minha paternidade. Eu sabia quem eram os meus pais e também sabia que eles não estavam lá. Tentando entender a minha história e a razão de ter me tornado uma pessoa tão ansiosa e afetivamente insegura, acho que consigo perceber que durante muito tempo, assim como o Pedrinho, eu também preferi fingir que tinha algo que eu, verdadeiramente, não tinha. 


 O Pedro é o primeiro garotinho na frente.
Foto: meu acervo pessoal






sexta-feira, 6 de outubro de 2017

OK, vamos falar de pedofilia.

Nessa guerra de egos e ideologias que temos visto, desde a performance polêmica do MAM, tudo o que eu não vejo são as pessoas, todas, se importando, de fato, com a criança envolvida.

Quando vejo as pessoas compartilhando compulsivamente a foto daquela garotinha e xingando o mundo, eu só consigo pensar: "ela é tão pequena, por que ninguém a está protegendo dessa exposição toda?".

A criança não estava lá sozinha, estava acompanhada da mãe. Se isso foi sensato ou não é outra história. Se a performance foi adequada, se foi de bom gosto ou não, é outra história também. Discutir a entrada ou não de crianças em eventos como esse é também outro assunto.

Mas, o que aconteceu ali, naquele dia especificamente, não foi pedofilia. Pedofilia é outra coisa. Pedofilia acontece quando uma garotinha, como essa da foto, por exemplo, se vê completamente sozinha, nas mãos de um agressor.

Ela tem 7, quase 8 anos. Foi passar as férias, no sítio, na casa da sua tia. Ela está dormindo na sala e acorda, de madrugada, com um brutamontes sobre ela, sufocando-a com seu peso, puxando seu pijama para baixo e colocando sua mão no pênis dele. Ela acorda assustada, não entende o que está acontecendo. Na escuridão total, tenta se livrar daquele ser sobre ela, que ela ainda nem conseguiu entender quem é, mas não consegue. Ele está forçando-a a abrir as pernas, magrelas. No meio dessa confusão ela só consegue entender que aquilo, que está acontecendo ali, naquela penúmbra, no meio da madrugada, é algo muito errado. Então a garotinha reúne toda sua coragem e grita o mais alto que consegue gritar, felizmente antes que ele conseguisse penetrá-la.

Quando a criança grita, aquela pessoa fala para ela ficar quieta e se levanta correndo. Então a menininha reconhece aquela voz. Não era um desconhecido, não era o cara nú do museu, trata-se de alguém que ela conhecia bem. Ele então corre para o quarto, onde ele estava antes, e finge que está dormindo. Os gritos da garotinha acordam seus tios, que chegam e lhe perguntam o que aconteceu. Quando ela conta, eles dizem que ela sonhou. Mas, ela sabe muito bem que não sonhou nada, seu peito ainda está dolorido, por causa do peso dele. Ela abre a mãozinha e mostra os cabelos que ela arrancou do seu agressor e, só então, seus tios acreditam nela.

Ainda sem entender o que acabou de acontecer, a garotinha é examinada. Ela tenta não pensar na vergonha que está sentindo, deitada na cama da sua tia, se sentindo exposta e invadida, então ela coloca o travesseiro no rosto. Seu hímem está intacto. Ela dorme o resto da noite na cama com a tia e na manhã seguinte o agressor não está mais na casa. Como a sua virgindade estar preservada é a única coisa que parece importar, seus tios conversam com a garotinha e todos decidem fingir que nada aconteceu.

Só quem não vai conseguir fingir é a menininha da foto. É ela quem não vai mais conseguir dormir bem pelo resto dos seus dias. É ela quem vai acordar no meio da madrugada tendo as piores crises de pânico. É ela quem não vai conseguir lidar com essa situação, pelo menos até hoje. É ela quem vai crescer insegura, se sentindo sozinha e sem entender direito o que aconteceu. Ela vai crescer sentindo que não pode confiar, e não confia mesmo em quase ninguém. Vai se tornar uma criança medrosa, insegura e muito ansiosa.

Quando ela se tornar jovem e conseguir entender o que aconteceu naquela noite, vai decidir deixar essa história de lado. Vai continuar guardando, junto com os tios, o segredo daquela madrugada sombria. Ela vai se sentir muito confusa quando ver o seu agressor levando a vida numa boa, sem sequelas e sem qualquer pena. Vai vê-lo se aproximar ainda mais da sua família. Se tornando parte de sua família, enquanto ela quem irá se afastar cada vez mais de alguém que ela confiava. Quando decidir contar para essa pessoa, que confiava, vai chamá-la de mentirosa, ciumenta e invejosa. Ela vai seguir seu caminho achando, sempre, que poderá ser trocada a qualquer momento, já que ela foi mesmo trocada pelo cara que abusou dela.

Mas ela vai conseguir superar e esquecer, ao menos vai achar isso. Vai conseguir ficar longe o suficiente para não ter que conviver com aquela pessoa que lhe causou tanto mal. Ela vai se tornar uma pessoa legal. Vai conseguir tocar a sua vida adiante, mesmo sentindo que perdeu algo muito importante, que não era a sua virgindade. Ela vai amadurecer rápido, vai se tornar uma boa pessoa, uma boa esposa, uma ótima mãe. Vai ser alguém com o bom senso de não levar o seu filho pequeno numa performance onde ele possa ser fotografado e exposto a todo tipo de pensamento.

Ela vai crescer, vai conseguir realizar muitas coisas, grandes coisas. Só não vai nunca parar de se perguntar: "por que eu me sinto tão só?" ou "por que eu estava lá sozinha?". E ela não vai conseguir deixar de ser uma pessoa tão ansiosa. Não vai conseguir deixar de ser tão insegura e de sentir aquele medo horrível, aquela sensação de solidão daquela noite escura. De ter um vazio imenso que nunca consegue suprir, mesmo depois dos 3 anos de terapia que ela faz.

Na foto: Adriana, 7 anos de idade.