Outro dia Tomás chegou da escolinha muito chateado, volta e meia ele volta chateado da escola, disse que estava triste porque havia se comportado muito bem, durante toda tarde, e mesmo assim não tinha ganho uma "estrelinha".
Eu perguntei-lhe que "estrelinha" era essa e ele me explicou que são estrelas que cada criança ganha quando se comporta bem e que no final do mês a criança que tiver mais estrelas vai ganhar um chocolate. Eu expliquei à ele que as regras da escola não se aplicam ao nosso lar - e preciso repetir isso à ele todos os dias quando volta da escola. Que sentia muito por ele não ter recebido a tal estrela, mas que ele não precisava ficar triste, porque ele não precisa de estrela nenhuma para se comportar. Que ser um garotinho gentil, educado, observador das regras e atencioso com as pessoas não implicaria em receber algum prêmio por isso. Disse-lhe que ser bem educado era um dever, de qualquer um que quer ser uma boa pessoa, mas que fazer isso simplesmente esperando algo em troca não era legal. Disse-lhe que o nome disso é "suborno" e em casa nós não subornamos e nem chantageamos as pessoas.
Depois dessa nossa conversa fiquei pensando na gravidade dessas "inocentes" estrelas e no que elas significam de verdade. Nada mais que uma forma de controlar as crianças, um meio mais fácil de fazê-las se comportar como os adultos querem que elas se comportem. Por que cargas d´água estamos ensinando nossas crianças, desde a mais tenra idade, a serem subornadas, chantageadas e enganadas? Por que precisam mentir tanto para uma criança para que ela faça o que os adultos querem? Diego e eu escolhemos jamais mentir para o nosso filho e sinceramente temos conseguido que ele nos ouça e faça aquilo que lhe pedimos muito mais fácil do que vejo outros pais tentando.
Quando ele tinha dois anos, e ainda chupava chupetas, uma vez, uma pessoa que nunca havíamos visto antes, chegou nele e disse: "dê sua chupeta para o Papai Noel que dai ele te trás um presente!". Ao que eu imediatamente retruquei: "não filho! Você deve parar de chupar chupeta porque vai entortar todos os seus dentinhos e fazer com que isso atrapalhe você no futuro!". Quando ele me entregou a chupeta, pouco tempo depois, me disse que não queria mais chupá-la para não estragar os dentes. Não raro escutamos coisas como: "se você comer tudo vai ganhar sobremesa!", enquanto eu lhe digo: "olha filho a gente precisa comer, porque é a comida que nos sustenta e nos mantém vivos, se você não comer não vai receber as vitaminas que precisa, vai ficar fraquinho, doentinho e não vai ter energia pra brincar." E ele come de tudo, inclusive brócolis e rúcula - se realmente estiver com fome. Eu dou frutas de sobremesa para o meu filho, então não há nenhum problema em casa se ele resolver comer só a sobremesa.
São muitos os "subornos" que os adultos fazem com as crianças e eu acho isso muito grave. Acho até que é a origem de todos os problemas mais infelizes que vemos na humanidade. Porque começa assim: "se você comer tudo ganha sobremesa", "se der a chupeta prô Papai Noel ele te trás um presente", "se passar de ano ou se tirar notas boas te dou uma bicicleta!", "se você arrumar seu quarto te dou uma mesada!", "se você passar no vestibular te dou um carro!" e termina com: "se você me der as licitações eu te dou um mensalão!". E não acho que estou exagerando aqui. Pois eu realmente acredito que todas as mentiras, chantagens e subornos que as crianças ouvem, muitas vezes de seus próprios pais, vão construindo o ser corrupto que chega à maturidade.
Uma criança nasce, como costumo dizer, zeradinha. Uma folha em branco sem nenhum defeito, nenhum preconceito, nenhum racismo, nenhuma corrupção. E enquanto ela cresce nós, os adultos, que deveríamos protegê-las e ensiná-las a ser a nossa melhor versão, somos os primeiros a corrompê-las! Uma criança não sabe mentir, ela aprende isso, muitas vezes, em casa com os próprios pais. Quando o telefone toca e a mãe pede à criança: "diga que eu não estou!". E quando essa criança descobre, quando começa a crescer, que "coelhinho da páscoa", "papai noel", "fada do dente" e zilhões de outras coisas nunca existiram - é uma grande frustração. Há quem venha me dizer: "mas é lúdico!" e eu digo: "o lúdico, as fantasias e imaginação infantis - tão bem vindas - não têm nada a ver com mentiras!". Nós nunca mentimos para o Tomás, que tem seis anos, e ele é uma das crianças mais criativas e imaginativas que eu já conheci. Ele curte o Natal, adora tirar fotos com o Papai Noel, mas ele sabe que é só o cara do Shopping vestido com uma fantasia legal.
Desde quando estava grávida do Tomás eu venho pesquisando, lendo e aprendendo sobre como as coisas que dissemos a uma criança - por mais inocentes que pareçam - podem impactar na sua vida futura. E cada vez mais me preocupo, não só com as coisas que dissemos à ele em casa, mas principalmente com as coisas que ele escuta fora do nosso alcance. E todos os dias quando o meu filho volta da escola eu tenho a árdua e exaustiva tarefa de explicar, novamente, todas as coisas tortas que ele escuta.
Preciso lhe dizer inúmeras vezes que ele pode brincar do que ele bem entender! Que não existe brincadeiras de meninos e brincadeiras de meninas, que ele pode gostar de qualquer cor - qualquer uma inclusive de rosa, pois é só uma cor -, que ele não precisa ser o número um em nada e que se ele não aprendeu algo hoje ele tem a vida toda para aprender, que não precisa ter pressa. Preciso lhe dizer todos os dias que o cabelo dele é lindo, que ele é um garotinho maravilhoso e que todas as coisas más que ele escuta não devem importar para ele.
Em 2017, quando escrevi o texto "Mãe de Menino"*, eu já previa que tudo isso iria acontecer em breve. Só não imaginava que seria assim tão difícil ver o meu filho descobrindo que o mundo pode ser tão cruel com garotinhos de seis anos de idade. Que ele seria impedido de brincar, com a boneca "baby alive" da amiguinha, por ser brinquedo de menina. E quando lhe perguntei o que ele achava disso, ele me respondeu: "ah! acho que a "fulana" brinca que o pai do bebê dela morreu e ela precisa cuidar dele sozinha, porque senão ela me deixaria brincar com ela e ser o papai na brincadeira!". E eu senti um misto de alívio, tristeza e uma preocupação imensa, pois se eu não quero que ele seja manipulado, nem eu posso fazer isso. E se nem eu, a mãe dele, o manipula, não posso permitir que outras pessoas o façam. Eu preciso protegê-lo, pois ele é o garotinho mais incrível e feliz que eu já conheci nesse mundo.
*Mãe de Menino - clique aqui para ler a postagem.
fotos: acervo pessoal