terça-feira, 31 de julho de 2018

Recomeço

Hoje faz oito dias desde a minha mastectomia. E para quem está curioso sobre a minha atual condição, é exatamente essa ai ao lado. A minha imagem está, talvez, ainda não tão bonita e limpa quanto essa. Ainda estou com os pontos e a minha cicatriz parece ser bem maior que essa. Estou ainda com os hematomas do dreno e de toda manipulação cirúrgica. Minha imagem no espelho é bem agressiva. O câncer é uma doença extremamente agressiva. Pensando que iria ficar muito deprimida depois da cirurgia, cheguei a desencorajar visitas, achei que iria precisar de um tempo maior até que pudesse falar sobre isso e de como me sinto depois de ter tido o meu seio esquerdo arrancado do meu corpo. Sim, ele foi literalmente arrancado, as marcas no meu corpo me dizem o que os médicos confirmaram depois: "sua mama saiu fácil, não precisamos raspar muito e nem forçar demais para que saísse, os hematomas que vão aparecer são normais, pois é um procedimento muito agressivo...".

Dizendo dessa forma tudo parece muito pior do que realmente foi. É a realidade, foi exatamente isso que aconteceu, mas por mais que pareça algo devastador, a mastectomia não foi, nem de longe, a pior parte dessa história que há alguns meses estou contando aqui para vocês. Para mim, a fase do estadiamento (exames para saber a extensão e gravidade da doença) foi a mais cruel de todas. Eu quero falar melhor sobre isso em outra ocasião. A cirurgia, em si, foi o começo das minhas alegrias.

A cirurgia estava marcada para as 07:00 do dia 24/07/2018. Saí de casa às 03:30, estava ansiosa para ir logo. Tinha arrumado minhas coisas na noite anterior e estava aflita para ir, mas quando olhei o meu filho dormindo na caminha dele, senti um nó na garganta. Beijei-o e disse baixinho em seu ouvido: "eu te amo muito meu amorzinho e eu volto logo pra você". Quando me ouvi dizendo isso, tive um medo avassalador de não voltar e sai chorando do quarto. Me despedi de todos e fui. Chegamos ao IBCC às cinco. Tudo transcorreu bem, estava bem cansada, pois não tinha conseguido dormir. O hospital é de uma organização e preparo impressionantes. Fiquei positivamente impactada com isso. Todos os profissionais, sem exceção, extremamente treinados e incrivelmente preparados para nos acolher. Chegamos, nos registramos e subimos para o centro cirúrgico. Diego entrou comigo na sala pré operatória, recebemos as instruções do enfermeiro (lamento não lembrar seu nome para agradecê-lo). Assim que me troquei, ele veio e me pediu para tirar a aliança, me despedir do Diego e acompanhá-lo. Esse foi, talvez, o momento mais solitário que passei em toda minha vida. Durou alguns segundos, mas naquele instante eu estava me despindo, literalmente, de tudo. Não apenas da minha roupa, brincos e acessórios, mas a minha emoção estava nua também, chorei. Quando entreguei minha aliança e me despedi do Diego eu sabia que daquele momento em diante estava completamente só para enfrentar tudo. 

A equipe de enfermagem que me recebeu foi extremamente carinhosa e senti que todos estavam empenhados em criar uma atmosfera de cumplicidade. Aos poucos fui me sentindo acolhida, relaxando e me acalmando. Quando a equipe médica chegou eu já estava completamente adaptada àquela situação. Dra. Vívian checou meus sinais e às 07:00  em ponto me levaram para a sala. Lá dentro além das enfermeiras muito carinhosas, preparando a sala estavam a Dra. Vívian anotando meus dados numa tela gigante, Dra. Renata checando meus exames todos e colocando num outro quadro de luz os exames de imagens e Dra. Camila, anestesista, que falou comigo e explicou como seria o precedimento anestésico. Então o Dr. Andrade chegou e enquanto marcava meu corpo falou comigo durante mais de dez minutos. Explicou mais uma vez o que seria feito e eu perguntei para ele se existia a possibilidade de não ter que tirar a mama toda. Ele parou o que estava fazendo, segurou a minha mão e falou: "Não, Adriana, não tem essa possibilidade!". Então ele mostrou no meu seio o local do tumor, me mostrou o tamanho dele - cerca de 2 cm e disse: "aqui está o seu tumor, bem no centro do seio, atrás do mamilo. O seu seio é bem pequeno querida (sim ele falou paternalmente comigo), eu preciso de uma margem de segurança de mais 2 cm em torno do tumor.". Então ele circulou os 2 cm em torno do tumor e isso abrangia todo o meu peito. Eu entendi o que ele queria dizer e aceitei finalmente o meu destino. E ele continuou: "você é jovem, tem uma pele flexível vamos conseguir reconstruir tudo no final do seu tratamento, eu me comprometo com você, mas hoje eu só quero te entregar saudável à sua família e o mais próximo da cura possível quando eu terminar. Confie em mim, confie em você e pense apenas na sua saúde agora".  E então ele me perguntou se ele podia iniciar. Eu disse que sim, então ele autorizou a anestesia. Olhei uma vez mais o relógio e estava marcando 07:25.

A cirurgia durou cerca de 4 horas. Quando abri os olhos já na sala de recuperação o relógio marcava 12:45. A Dra. Camila estava ao meu lado. Me perguntou se eu estava bem e já foi falando entusiasmada: "sua cirurgia correu muito bem, nenhuma intercorrência, tudo dentro do normal e previsto e eu tenho uma ótima notícia para te dar: nós retiramos 3 linfonodos e os 3 deram negativos - livres de macrometástases. O Dr. Andrade vai falar com você depois e explicar tudo, mas ao que tudo indica, clinicamente falando, você já está livre do câncer". Eu fiquei mais uns 15 minutos em observação, em seguida a enfermeira veio e disse: "já chamamos o Diego e vamos te levar para o quarto agora". Já no quarto eu nem me lembrava mais de quantos linfonodos haviam sido retirados, mas sabia que não tinha tido um esvaziamento axilar, o que já era uma grande notícia. A enfermeira Aninha, me recebeu com todo carinho e atenção. Eu estava tão bem e feliz que nem lembrei que já estava sem o meu seio esquerdo. Passei o resto do dia dormindo, acordando, recebendo o carinho do Diego e feliz por ter recebido tão boas notícias. À noite eu já consegui dar notícias eu mesma aos meus queridos, postando essa foto: 

No dia seguinte, logo de manhã recebi alta e então menos sonolenta consegui entender todas as informações que os médicos me passaram. O nódulo estava bem delimitado, sem ramificações e os três linfonodos livres. Agora estamos aguardando o resultado da biópsia dos tecidos e do tumor pra o próximo dia 16/08, quando eu serei encaminhada  ao oncologista, que vai definir os próximos passos do tratamento. Mas, segundo o Dr. Andrade existe a possibilidade de ser um tratamento bem mais tranquilo que estava imaginando, talvez nem precise que químio ou rádioterapias. Eu tenho certeza absoluta que a alimentação que adotei, desde o instante que descobri o nódulo e o acompanhamento nutricional que estou tendo, fez toda a diferença, mas esse também é um assunto que quero falar, exclusivamente, em outras postagens.

Eu só fui conseguir ficar sozinha e me olhar inteira no espelho ontem, depois que tirei os curativos e dreno no hospital. Não é algo fácil, não é nada bonito o que eu vi. Chorei por alguns minutos, mas não senti pena de mim mesma. Não me senti injustiçada pela vida ou algo assim. Senti um vazio, senti uma certa tristeza por ter tido que chegar ao limite, mas em seguida fui invadida por um sentimento profundo de gratidão. Estar aqui viva, praticamente livre do câncer, recebendo notícias que eu só esperava ouvir daqui alguns anos e ter sido tratada com tanto cuidado e carinho pela equipe médica, pela enfermagem e pelos meus queridos que estão aqui cuidando de mim, é libertador. 

Quando eu disse que estava vivendo um divisor de águas, no post anterior, eu sabia que minha vida iria mudar, mas não imaginava que fosse tanto. Eu já me sinto uma pessoa mais feliz, mais amada, mais livre e abençoada. Estar, ainda que precariamente, cuidando do meu filho, podendo abraçá-lo, me recuperando tão rápido e saber que não há mais um câncer crescendo no meu peito, é uma dádiva. Quando o meu marido me devolveu a aliança e segurou a minha mão, com o mesmo amor com que a segurou pela primeira vez. Quando ele se recusou a sair do banheiro  - quando fui ver a minha cicatriz a primeira vez - e disse que queria estar comigo naquele momento. Quando eu vi em seu olhar que nada havia mudado entre nós, eu soube, eu tive a plena certeza de que a minha vida mudou sim, mas que agora será muito melhor.



Toda gratidão que houver nessa vida, por tudo que estou vivendo, por esse momento incrível de libertação, de saúde, de recomeço, de reconstrução... OBRIGADA!


Fotos: gettyimages e Adriana Mani

segunda-feira, 23 de julho de 2018

Divisor de Águas

Eu sempre ouvia as pessoas dizendo que determinadas situações haviam sido um "divisor de águas" em suas vidas e ficava imaginando se algum dia eu passaria por uma transformação dessas. Quando fui mãe pela primeira vez, achei que havia atravessado um momento desses. É claro que foi uma mudança imensa na minha vida, mas nem mesmo a maternidade promoveu em mim um enfrentamento tão definitivo quanto o que estou vivendo hoje.


Hoje é o último dia que estou vivendo como a Adriana que todos conheceram e que chegou até aqui. Essa pessoa que nasceu, viveu por 46 anos de uma determinada maneira e chegou até esse momento, não vai mais existir a partir de amanhã. É o meu último dia inteira e meu último dia com câncer. Nos últimos três meses eu vivi um turbilhão de emoções. Eu chacoalhei a minha vida, a minha essência, eu revirei o meu baú e decidi jogar muita coisa fora, talvez eu jogue hoje até mesmo o baú. Esses últimos três meses foram o meu período de transição e hoje é o meu dia D. É o meu imaginado, até então, "divisor de águas". Amanhã, quando acordar da minha cirurgia, essa pessoa de agora não vai mais existir. 

Estou indo enfrentar uma das piores situações e medos de toda a minha vida até aqui, mas eu sei exatamente quem está indo comigo - mesmo que esteja à quilômetros de distância física de mim. Eu sei exatamente quem fez o impossível e saiu do Mato Grosso para estar aqui, eu sei quem ficou em Goiânia preocupado comigo, quem largou todos os seus afazeres e a sua vida lá no Paraná para estar aqui. Quem não pode estar aqui fisicamente, mas mesmo à milhares de quilômetros, está aqui juntinho comigo. Eu sei quem está comigo mesmo com o Oceano Atlântico imenso entre nós. Eu sei quem tá do outro lado do mundo fisicamente, lá em cima no Canadá, na Suíça, na Grécia, nos EUA, na Holanda, na França, na Itália, no Pará, no Paraguai ou espalhados pelo Brasil,  mas estão aqui comigo nesse exato instante. Eu sei quem é que tá lá na Bahia, desesperada para chegar aqui e poder me abraçar quando puder... Assim como eu sei exatamente quem me abandonou no meio do caminho. Quem está aqui ao lado, que poderia ter vindo ficar comigo nas horas mais difíceis que eu passei e não veio. Quem entra toda hora na internet, curte um milhão de coisas e não perde dois minutinhos e me pergunta como eu estou, há meses. Quem falava comigo todo santo dia e hoje não me procura mais. 

Quando você recebe um diagnóstico de uma doença grave, por mais difícil que isso seja, você também recebe uma das mais incríveis oportunidades na vida. A oportunidade de reflexão. Seja qual for o resultado final, você tem esse tempo para poder revirar o seu baú, rever as suas prioridades, fazer um balanço da sua vida e fazer todas as mudanças necessárias e isso é uma dádiva. Nem todo mundo tem esse tempo ou chance de fazer isso. De mudar o que precisa ser mudado, de rever o que precisa ser revisto e, no meu caso, a sorte de poder reverter a situação toda.

Amanhã quando eu acordar da anestesia será outra pessoa que terá acordado. Eu não sei ainda como será acordar sem uma das partes que mais me davam orgulho na vida. Eu nunca imaginei que um dia pudesse ter, ao mesmo tempo, sentimentos tão contraditórios: uma felicidade imensa por estar me livrando definitivamente do câncer e uma tristeza tão profunda por ter que ser mutilada. Amanhã eu não terei mais o orgulho de ter seios lindos e perfeitos, mas amanhã não terei mais câncer. É claro que ainda terei que passar (como forma de erradicação e prevenção) por quimioterapias, radioterapias e tomar hormônios por pelo menos cinco anos antes do médico me dizer que estou curada, mas o câncer, o tumor que me causou tanto medo e preocupação, não vai estar mais dentro do meu corpo.

Acho que jamais poderei agradecer como gostaria a todos aqueles que me suportaram até aqui. Que leram os meus textões, ouviram meus desabafos, não se irritaram com as minhas lágrimas, que me deram as broncas que eu precisava, quem de alguma forma aliviou o que eu estava sentindo e não se cansou de mim. Nem eu me suportei em alguns momentos. Eu sei que vou superar isso tudo, que vou me refazer, reconstruir, reerguer e vou conseguir isso porque tenho, aqui ou espalhadas pelo mundo todo, pessoas que realmente se importam comigo. E quando eu voltar para casa eu terei deixado lá junto desse tumor todas as minhas mágoas, ressentimentos, dores ou tristezas desnecessárias. 

Esse é o meu divisor de águas! O momento em que estou abandonando todos os pesos, os traumas, orgulhos, vaidades, futilidades e coisas que atrapalharam a minha jornada até aqui. Eu tenho refletido muito sobre as causas, os aprendizados e conhecimentos que essa enfermidade me trouxe. E acho que a maior descoberta de todas elas foi o quanto eu mesma tenho me ferido, machucado e maltratado nesses anos todos. Eu precisei de um laudo médico nas minhas mãos, eu precisei da materialização disso tudo para finalmente enxergar que a pessoa que mais me machuca sou eu mesma. Pois sou eu quem permitiu tudo o que vivenciei até esse presente momento. Fui eu quem aceitou relacionamentos tóxicos, quem se deixou ser psicológica e fisicamente  abusada, quem aceitou migalhas afetivas, quem mendigou afeto de quem não tinha para me dar. Fui eu quem deixou me esperando esse tempo todo -  pessoas que realmente me amam e se importam comigo - enquanto eu ficava chorando por um único afeto não correspondido. Fui eu que não aceitei a minha condição e não segui a minha vida, fui eu que não esqueci, que não perdoei pra valer e que não me permiti a ser feliz ao lado daqueles que realmente me querem ao lado deles. O maior aprendizado e a maior mudança de toda a minha vida será essa: eu não mais deixarei quem me ama esperando por mim enquanto sofro por afetos não correspondidos. Eu vou continuar amando pessoas que não me amam, porque não tem como se renunciar o amor. Mas eu descobri que antes de tudo vou precisar aprender a me amar, me perdoar, me aceitar e principalmente aprender a ser feliz. Eu preciso e mereço ser feliz.

Minha cirurgia será amanhã cedinho, às 7h!

Orem por mim!
Vibrem por mim!
Torçam por mim!


foto: pinterest