domingo, 1 de novembro de 2020

Quem abre o vidro pra você?

 

Essa notícia já é bem velha, mas se você assistiu a primeira temporada de Masterchef vai se lembrar - que na final a Elisa não conseguia abrir o vidro de palmitos e então ela corre para o pai abrir pra ela. Desde então eu tenho me perguntado: "quem é que abre o vidro pra você?". Quem é aquela pessoa que está lá no momento que você mais precisa e te ajuda?

E quando você está sozinho, quem, meu Deus, vai abrir esse bendito vidro de palmitos? Hoje eu já aprendi a enfiar a ponta da faca na lateral da tampa - para deixar o ar entrar - e então abro sozinha e sem esforço todos os vidros de conservas da minha vida. Mas até você descobrir que pode, que é capaz, sofre um bocado.

Toda essa metáfora para poder dizer que com o tempo a gente aprende a se virar sozinho. Acho que comecei a perceber que ninguém iria "abrir vidros" pra mim quando eu tinha 12 anos. E hoje, olhando em retrospecto, acho que isso me ajudou a superar e enfrentar muitas coisas complicadas ao longo da vida. Quando você não tem para onde correr, acaba ficando e enfrentando a coisa toda.  

Eu tenho lido bastante sobre narcisismo e temos falado bastante disso na terapia também. O que antes me vitimizava, agora eu sei que foi o que me fez forte. Eu jamais teria ido atrás dos meus sonhos se não tivesse aprendido "abrir minhas próprias conservas". Jamais teria enfrentado meus piores medos: de escuro, de abandono, de dirigir sozinha na estrada, de ficar gravemente doente, de solidão... Eu jamais teria me libertado das amarras invisíveis que me prendiam à situações masoquistas.

A verdade é que, como já disse em outras postagens, a gente está mesmo sozinho. Descobri isso quando precisei soltar da mão do meu marido e entrar sozinha naqueles aparelhos de tomografias, nas salas de cirurgias e quando era o meu braço que eu estendia para aplicarem a quimioterapia. Era só eu que iria sentir o efeito daquilo tudo, por mais que alguém estivesse ali segurando a minha mão. Talvez não tenha sido tão difícil aceitar essa condição, que no fim é a de todos, porque eu já vinha, há muito tempo, tendo que enfrentar meus reveses sozinha.

Ter estado muito tempo por minha conta e risco me deu asas. Pude voar para onde queria e construir meu próprio ninho. Sem isso talvez eu estivesse, ainda hoje, morando em lugares que eu detestava na adolescência, e com pessoas que não me amavam. Talvez não tivesse tido a coragem de pegar minhas coisinhas e ir morar sozinha aos 16 anos, ou ter pego a minha filha e me mandado de volta para São Paulo quando me separei. Certamente não teria corrido imediatamente para descobrir que nódulo era aquele no meu peito e muito menos enfrentado 1100 km de estrada sozinha, com o meu filho pequeno, várias vezes para seguir meu tratamento. Também não teria alugado um quartinho pra voltar, quando precisamos.

Talvez, se eu tivesse dependido, a vida toda, de alguém para abrir minhas "compotas" complicadas. Eu nunca tivesse saído da casa dos meus avós, que me acolheram, ou voltado para a casa deles, em vez de seguir meu caminho. Talvez fosse ainda pior: teria dependido, "da caridade que quem me detesta" ou que alguém cuidasse da minha filha, para eu conseguir trabalhar, pagando um preço bem alto por isso. Mas, eu abri as minhas asinhas murchas, corri com as minhas perninhas magras e trêmulas - morrendo de medo - e me joguei do alto da montanha. Para minha surpresa as asinhas machucadas deram conta daquele primeiro voo. Depois foi só insistir, insistir e insistir.

Isso tudo não significa que não tenho chorado ou que não foi demasiadamente doloroso algumas vezes. Foi difícil não ter "aquele" colo específico para chorar, mas depois que a gente chora, lava o rosto e vai à luta. Eu me emocionei quando a Elisa, sem conseguir abrir o vidro, correu para o pai e ele abriu para ela. Enquanto todo mundo a criticava por ter tido essa ajuda, eu só pensava no quanto aquilo era bonito: ter para quem correr. Saber que tinha alguém ali em quem ela podia confiar. Alguém que estaria ali para ela sempre - ao menos até que ela aprendesse enfiar a ponta da faca na lateral da tampa.

A Elisa ganhou o jogo e eu acho que foi honesto, ela mereceu! E eu também ganhei meu jogo! A diferença entre nós é que ela chegou inteira no final. Pessoas como eu vencem, vencem bastante, mas chegam despedaçadas - pelo esforço contínuo de aprender errando-, sem ter quem o ensine no caminho. Talvez até a gente leve menos tempo para aprender. Elisa, aos 24 anos, foi sozinha para Paris enfrentar o mundo e fazer suas conquistas. Eu consegui cuidar de mim aos 16 anos, não tinha nenhum prêmio na bagagem para me ajudar, mas consegui!


Eu não "abro os vidros de conservas" para os meus filhos, mas desde pequenos vou ensinando como eles devem fazer "para soltar o ar e liberar a pressão da tampa". Em algum momento eles terão que passar por situações  na vida em que precisarão enfrentar sozinhos. Eu nem sempre estarei lá. A mais velha tem se saído muito bem sozinha, mas ela sabe que tem alguém olhando de longe e que se a barra pesar, mas pesar mesmo, ela poderá perguntar: "como eu abro isso, mãe?".


imagens: divulgação masterchef brasil




2 comentários:

  1. Amei seu texto, Adriana!
    É bom ter um porto seguro, uma referência em momentos difíceis pois às vezes a gente até sabe abrir os vidros, já até abriu muitas vezes, mas em alguns momentos pode acontecer de a gente estar tão frágil que, apesar de saber, simplesmente não consegue.
    Ter a quem recorrer deveria ser direito humano, de tão essencial.

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    1. Obrigada Carlos! É sempre muito bom ter esse retorno. Muito obrigada!

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